CRÍTICA: OJU ORUM

ANASTÁCIA E AS MULHERES AMORDAÇADAS

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A Segunda Mostra de Teatro Heliópolis, com seu olhar voltado para as obras de teatro da periferia de São Paulo, recebeu no final de setembro e início de outubro de 2016 diversas produções teatrais que ofereceram ao público apresentações e debates gratuitos nas ruas do bairro de Heliópolis e no galpão do Casarão Maria José de Carvalho, sede da Cia. de Teatro de Heliópolis.

Oju Orum, o mais recente trabalho cênico do Coletivo Quizumba, com direção de Johana Albuquerque, que fez sua primeira temporada em outubro e novembro de 2015 no Casarão, foi uma das montagens presentes na Mostra deste ano. O Coletivo, formado por artistas e educadores, surgiu em 2008 e, desde então, tem como proposta a discussão e realização de ações capazes de refletir criticamente as questões artísticas e políticas do mundo contemporâneo. Nesta direção, o foco de sua pesquisa estética está no estudo da historiografia e da formação cultural do Brasil e nos símbolos das culturas africanas e afro-brasileiras. Em 2014, o grupo é contemplado pela primeira vez pelo Programa de Fomento ao Teatro da cidade de São Paulo. Com este apoio foi realizado o projeto Santas de Casa Também Fazem Milagres, que resultou na montagem cênica Oju Orum.

Começamos pela gênese do grupo e da construção da peça para chegar à apreciação crítica da apresentação que assistimos na noite de 01 de outubro de 2016 por ser este um fator relevante que influencia a estética do trabalho. Foi através de uma política pública de cultura, conquistada pela categoria teatral, que o Coletivo teve a oportunidade de desenvolver uma longa pesquisa pedagógica, musical, dramatúrgica e de experimentação cênica que dá consistência à montagem.

Como fio condutor da peça, o Coletivo traz à tona o mito de Oju Orum, princesa Bantu trazida para o Brasil na condição de escrava e chamada, a partir de então, de Anastácia, que teve sua voz calada por uma mordaça depois de se recusar a ter relações sexuais com seu capataz. Numa poética épica, o narrador (como uma espécie de griot), conta um mito africano da criação do mundo, apresentando o rio-mulher Oju Orum, de onde nascem as outras personagens da história. A partir de depoimentos de mulheres de diferentes idades e da pesquisa sobre distintos períodos no Brasil, são criadas as personagens, todas adolescentes: Alice, do começo do século XX, criada no meio rural, que, após sua primeira menstruação, é destinada a se casar e ser mãe; Alzira, mineira da década de 1970, engravida, é expulsa de casa e tenta a vida no Rio de Janeiro e Anita, contemporânea, sofre opressão por conta de sua sexualidade e tem sua particularidade violada com uma foto íntima compartilhada na internet.

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Voltada para o público jovem, que se divertiu muito e acompanhou atentamente a apresentação realizada na Mostra, a peça traz histórias entrecruzadas de quatro mulheres comuns, de diferentes tempos e locais, que tiveram suas vozes silenciadas devido à opressão patriarcal. A partir das histórias dessas quatro personagens, o texto (construído coletivamente, mas costurado e assinado por Tadeu Renato) trata sobre as mulheres periféricas, pobres, negras, que se esforçam por tomar seus destinos nas mãos lutando contra uma sociedade machista e capitalista que as reduz a objetos na vida pública e privada.

Com forte influência da cultura africana e afro-brasileira, o Coletivo (formado por Bel Borges, Bruno Lourenço, Camila Andrade, Jefferson Matias, Kenan Bernardes, Thais Dias e Valéria Rocha) constrói imagens de cunho simbólico. A começar pelo campo de atuação – uma arena no centro do palco, fazendo referência aos terreiros das religiões de matrizes africanas – e pelos figurinos, remetendo o público às figuras dos Orixás. Outro ponto interessante da obra é a direção musical de Jonathan Silva. Ainda numa proposição épica, as canções comentam a cena ou colaboram para o melhor entendimento dela, aproximando o público jovem ao som de ritmos populares, como o samba, o funk e o baião. A peça termina com um caloroso Salve às mulheres da nossa história que, assim como o rio, têm o correr como destino natural.

Por: Beatriz Calló * e  Fernanda Azevedo **

Fotos: Caroline Ferreira.

* Professora de teatro e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP).

**Atriz da Kiwi Companhia de Teatro e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP).

 

CRÍTICA: FOI O QUE FICOU… DO BAGAÇO.

Olha o circo no meio da rua!
Um acontecimento em Heliópolis.

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Uma rua estreita, como a totalidade das ruas na comunidade, chamada, ironicamente – ou não -, Rua do Pacificador. Uma barraca montada no caminho. Um circo decadente feito de tecidos esfarrapados ocupa quase todo o espaço da rua mencionada, na Comunidade de Heliópolis. Pelas laterais livres sobem e descem pessoas de todas as idades, homens e mulheres, todos pertencentes a classe trabalhadora que, em pleno sábado à tarde, se deparam com esse acontecimento: um espetáculo teatral no meio da rua. Alguns meninos brincam no tatame já montado para o público da peça, músicas, de estilos variados, soam em alto volume. Numa esquina um bar, na outra uma “vendinha”. Este é local onde se apresenta mais um espetáculo da II Mostra de Teatro de Heliópolis: A Periferia em Cena e o Bando Trapos, de São Paulo, irá apresentar Foi o que ficou… do bagaço.

Antes do início do espetáculo muita gente circulando, mas poucas permanecendo. Com a chegada dos palhaços essa configuração começa a mudar. Um pouco depois das 14h, de um dia cinzento, o primeiro palhaço, chamado State, vem com sua velha mala. Chega da rua de baixo e conversa com o público como se fosse mais um transeunte. Não invade o espaço da cena e tão pouco está preocupado se todos lhe escutam. Conversa com as pessoas próximas, mas é visto pela totalidade dos que ali estão. Pergunta as horas e o que vai acontecer naquele espaço. Alguém responde que é teatro. As crianças se aproximam, apertam seu nariz, brincam e tentam atrair atenção do palhaço que se relaciona com elas durante algum tempo e vai embora. Apesar de a personagem não adentrar à cena, a maioria parece saber que começou a apresentação.

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Da mesma rua, entre um carro e outro, vem mais um palhaço carregando o que ele mesmo denomina “parafernalha”. É uma tralha formada por diversos instrumentos de percussão, buzinas e outras coisas penduradas.

Atentos à tradição do teatro de rua, a caminhada dos palhaços pelas ruas do entorno ajuda a divulgar a apresentação e traz com eles mais pessoas interessadas no que aconteceria ali.

O segundo palhaço, Astrolábio Pimentão, também chega como quem está de passagem. Pergunta o que vai acontecer naquele lugar. É feira? É!, responde uma criança. Vai ganhando a cena, olha para o circo ali montado e esbarra numa caixa de onde, depois de algum mistério para atrair a curiosidade da público, retira uma sanfona. Meninos e meninas, em alvoroço, transbordam em alegria. Por vezes, algumas crianças invadiam o espaço da cena querendo brincar com os palhaços, tocá-los, provocá-los, mexer nos objetos, participar e não simplesmente assistir do tatame. A euforia daqueles meninos e meninas permeou a peça toda e os atores, com as máscaras de suas personagens, se relacionavam com esse público ao mesmo tempo em que davam continuidade ao roteiro da encenação. 
A divisão do espaço para atores e espectadores foi delimitada era uma corda no chão que só foi notada por nós quando virou brincadeira das crianças e alguém da equipe foi retirá-la. Foram poucos os momentos em que atores e público estiveram separados, crianças e passantes tomaram a cena em grande parte do espetáculo.

A rua onde estava a maioria do público, por vezes, chamava atenção pelo seu pequeno congestionamento e era inevitável algum movimento e auxílio das pessoas para que carros pudessem circular. Os gritos de Não passa, dá ré, esterça…, se misturavam a tantos outros e ajudavam a compor uma trilha sonora da peça. Lá vinha um carro com som em alto volume e os palhaços paravam, dançavam, interagiam com o motorista até que fosse possível prosseguir com a sequência do espetáculo.

Alguns moradores e moradoras assistiam das janelas de suas casas. Alguns homens do bar da esquina pausaram o bilhar para assistir à peça. O público, em sua maioria acompanhou o espetáculo inteiro. Um menino ia e voltava com sua bicicleta. Uma senhora, catadora de latinha, passando por ali, sentou, sorriu e logo foi embora por conta do cansaço. Um pai parou a moto para a filha assistir. Um homem verbalizou que tinha que ter isso aí mais vezes. Nessa altura já éramos, certamente, mais de uma centena de pessoas assistindo ao Bando Trapos. Sem contar os transeuntes, em movimento constante. Em momentos como esse, sabe-se que a rua escancara sua possibilidade do encontro, de confronto… ressignificando os espaços e as relações sociais.

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Durante o espetáculo os palhaços traçam relações de poder. Um deles, o State, que nos remeteu aos EUA, se autodenomina dono do circo e com seu controle remoto (literal) vai apertando play, pause… ditando as regras do jogo ao seu bel prazer. Em determinado momento eram três palhaços, dois deles subordinados ao State. O primeiro se sujeitou a tal situação depois de uma disputa entre os dois para definir qual seria o mais bem qualificado, cada um expunha suas habilidades, as pessoas e os lugares pelos quais haviam passado, em síntese, seus currículos. State incomodado com a “vitória” do outro, manda-o embora, mas, em seguida, percebendo que ele poderia ser útil no circo, pede desculpas, logo aceitas. O segundo, desanimado, desacreditado de suas qualidades, é capturado, pela estratégia de State, com uma discurso sobre sua suposta grande capacidade.

Num dado momento, aliás, não só Sonodídeo Doponega e Astrolábio Pimentão, assim como o técnico de som e parte do público são levados a seguir as ordens de State. Uma pessoa vira o camera man, outra o holofote e outra a claquete. Assim segue a peça até que, cansados das ordens e da perversidade de State, os outros dois se unem para enganá-lo e criar seu próprio espetáculo a partir de uma relação mais democrática e horizontalizada, livre de autoritarismos.

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Perseguições, entradas e saídas, improvisos e brincadeiras com o público e uma série de gags clássicas de palhaços são apresentadas com bastante comicidade. Ao final, após minutos de aplausos e apupos calorosos, sem mais a cena para atrair suas atenções, as crianças resolvem desbravar e entender o que existe dentro da barraca montada para a peça. Uma música sobre os palhaços, as crianças no colo dos atores, ruas, calçadas e janelas cheias de gente e um clima de festa.

Portanto, se um acontecimento é aquilo que nos atravessa, podemos dizer que no dia 01 de outubro de 2016, em um pequeno trecho da Comunidade de Heliópolis, algo nos aconteceu e nos afetou.

Por: Angela Consiglio e André Murrer  *
Fotos: Caroline Ferreira.

* Estudantes-pesquisadores do Programa de Pós-graduação em teatro do Instituto de Artes da Unesp.

CRÍTICA: O ESPATACULOSO ESPETÁCULO DA FAMÍLIA FODACCIO.

O Espetaculoso espetáculo da família Fodaccio: uma boa mostra de potencial de grupo iniciante.

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Tratava-se de um dia fundamental para a democracia no Brasil e na cidade de São Paulo. Dia eleição. Dia em que a população, com algum poder, deliberaria sobre quem, em âmbito municipal, iria representá-la por quatro anos. O domingo oscilava entre um cinzento quase-vivo (mais-pra-chuva) e amarelo muito-tímido… Um vento gelado banhava a comunidade com casas a desafiar a gravidade…

Pulsando de modo diferenciado, em pleno coração da comunidade de Heliópolis, o espetáculo teatro tomava acento e terreno na Rua União (antiga Rua dos Esportes). Apesar do domínio do cinzento, o colorido (lindo) ficava a cargo dos três artistas que compunham o Grupo Família Fodaccio (cuja origem ocorre na Vila Brasilândia – Região Norte da Cidade de São Paulo): Leandro Cenci, Mariana Taques e Patrick Castilho e a meninada encantada com a possibilidade de ver teatro ao vivo. Ao redor de espaço de representação, circunscrito por uma lona estrelada no chão, uma ilha de crianças assistia e, formando uma linda constelação, ali estava disposta a assistir e a participar do espetáculo daquele domingo, terceiro dia de programação da II Mostra de Teatro de Heliópolis: a Periferia em Cena.

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O espetaculoso espetáculo da família Fodaccio, apresentado em quarenta minutos, estrutura-se a partir de alguns expedientes tradicionais circenses. Os artistas são bastante jovens, entregam-se à obra, têm boa comunicação, mas parecem ainda iniciantes, não tanto da cena, mas, exatamente, quanto ao universo circense. De qualquer modo, por alguns das conquistas do coletivo, pode-se depreender que há verve e muito manancial a ser descoberto e potencializado.

O maior destaque do espetáculo, e isso caracteriza-se fundamental em obras que se apresentam na rua, foi garantir a participação do público, tomando-o como companheiro e criador dos diversos quadros que compõe da dramaturgia de cena. Especialmente, uma lírica passagem do espetáculo, ao som de Carinhoso (do grande Pixinguinha) e crianças fazedoras de bolhas de sabão, talvez pudesse apresentar-se a partir de um novo desenho de cena.

Apesar de ter conversado pessoalmente com dois dos integrantes do elenco, agora é o momento para investimento na poética do palhaço, sobretudo a questão intrínseca dos contrastes entre a tipologia pressuposta pelo Branco e Augusto. Segundo apurado, o grupo desenvolve trabalho com Cida Almeida que, seguramente, pelos conhecimentos práxicos de que dispõe, tenderá a potencializar o material de cada integrante.

Por: Alexandre Mate *
Fotos: Geovanna Gelan

* Professor-pesquisador do programa de pós-graduação, do Instituto de Artes da Unesp, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.

 

CRÍTICA: TAIÔ

Taiô: uma linda epifania em dia frio e cinzento em um dos infindos corações da comunidade de Heliópolis.

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A comunidade de Heliópolis fica em uma imensa área, entre a zona Sul da cidade de São Paulo e o município de São Caetano do Sul. O lindíssimo espetáculo Taiô, apresentado pela tradicional Cia. do Miolo (SP), foi programado para apresentar-se em algum ponto da imensa comunidade de Heliópolis. Exatamente no entrecruzamento de duas ruas, uma delas é chamada de Rua da Alegria. O dia estava muito cinza e a temperatura abaixo dos 20◦C. Bem defronte a uma escola de educação infantil, chamada Zezinho, o elenco – bastante afinado, com destaque à atriz Edi Cardoso –, apesar de tantas dificuldades climáticas e de permanência naquele local, conseguiu fazer com que muitos de nós que lá estávamos conseguíssemos vislumbrar a necessidade quanto à libertação de nossos pipas, e não apenas interiores…

O texto, muito poético, de Jé Oliveira, é costurado a partir da junção de metáforas que incitam à liberdade e ao desafio permanente quanto ao enfrentamento dos ventos permanentes. Na obra, o pipa tem funções alegóricas, representando o fragilíssimo objeto de papel de seda, que enfrenta e desafia as leis e não apenas da gravidade; concerne aos nossos sonhos de libertação e de busca de cenários mais aprazíveis ao viver patilhado-em-sonhos; provoca quanto à busca de parcerias significativas…

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O domingo foi de eleições municipais em São Paulo, e, mesmo sem conhecer a comunidade – em suas dinâmicas mais características -, o espetáculo foi apresentado em meio a um clima muito nervoso! Muitas motos passavam ao lado do espetáculo, em movimentos constantes (em determinado momento um dos motoqueiros foi ameaçado com arma por dois outros…); em poste próximo parece que alguém fazia um “gato”, em plena luz do dia; entulho era depositado ao lado do espaço de representação; alguns carros, com equipamentos de som (altíssimo), insistiam em passar pelo local… Tudo muito extremado, tudo muito violento (tornado natural para aquela comunidade).

Desse conjunto dispare de disputa lancinante, porque era disso que se tratava (e aquela comunidade tem donos, em permanente processo de disputa entre si!!), a obra não se deixou afetar e/ou trouxe tais apelos para a cena: a beleza do texto e das imagens criadas por Renata Lemes seguiam seu fluxo criador… De certo modo, o espetáculo manteve-se fiel à sua partitura inicial. Portanto, e tendo em vista as características intrínsecas de obra de rua, seria fundamental incorporar algumas das características das ruas e incorporá-las à obra, sobretudo em razão de o protagonismo acolher também a cidade e seus transeuntes. Em dois momentos distintos, o elenco divide-se e apresenta curtas narrativas para um número menor de pessoas… nesse momento, talvez, os contrastes pudessem ser anunciados… Durante vários momentos, senti-me dividido entre o estético e o poético (agressivo) das ruas.

Para finalizar, o momento de apresentação da obra foi belo: período de suspensão de tantas e vivas contradições social para antever o lírico escondido na vida de tantas pessoas, em concreta situação de risco e perigo, e sob ameaça permanente! Cumprimento vivamente o conjunto criador por momento tão belo e tão necessariamente necessário para colorir nossas pálidas faces… “Aurora, entretanto, eu te diviso!”

Por: Alexandre Mate *
Fotos: Geovanna Gelan

* Professor-pesquisador do programa de pós-graduação, do Instituto de Artes da Unesp, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.

Olhar crítico sobre os 2 primeiros dias da Mostra

A HORA E A VEZ DOS MACUNAÍMAS
(Ou uma breve crônica sobre o sopro de teatro em Heliópolis)

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Naquela sexta-feira cinzenta e fria, as crianças se aproximavam timidamente das duas bicicletas, cada qual equipada com uma caixa coberta no melhor estilo lambe-lambe.

– O que é isso?, perguntavam curiosas.

– Teatro! Sentem no banquinho para assistir à história.

Pouco a pouco, a fila de meninos e meninas crescia ao redor da dupla de Ciclistas Bonequeiros, Gabriela Fiorentino e Gustavo Guimarães Gonçalves, na frente do prédio da Ação Comunitária Nova Heliópolis, situado numa das ruas da favela homônima. Era a primeira apresentação do programa da 2ª Mostra de Teatro Heliópolis, realizada pela Companhia de Teatro Heliópolis e pela produtora MUK. Depois de ver os dois episódios de Uma Saga Macunaímica, a garotada já não queria mais sair dali. Com fones de ouvido, as crianças escutavam a narração de trechos da história de Macunaíma, o herói pouco heróico criado pelo escritor Mário de Andrade, enquanto acompanhavam as aventuras e desventuras do personagem pelas mãos dos bonequeiros.

A estética do lambe-lambe conferiu outra dimensão ao teatro de objetos. Em pouco mais de três minutos, o espectador era transportado a um efêmero universo de fantasia e possibilidades. Talvez a criançada se ativesse menos à narrativa (deliciosa para os ouvidos atentos, vale dizer, porém um tanto sinuosa naquele contexto) e mais à precisa manipulação dos objetos e ao cenário repleto de elementos. Afinal, não era fácil disputar a atenção com os carros e as motos, os jingles de candidatos a vereador e a bagunça dos próprios Macunaímas, quase todos eles usando chinelinhos de dedo. Enquanto alguns assistiam fascinados ao teatro, outros galgavam muros e lajes em busca de suas bolas de futebol. Talvez a imagem que resuma a passagem dos Ciclistas Bonequeiros por aquela rua, naquela sexta, seja a do ágil moleque saltando da laje com a bola recém-encontrada nos braços. Era quase noite, estava quase escuro, e ele conseguiu! Foi assim também com o Macunaíma literário, quando saltou ao infinito.

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A saga continuou. Deixamos a favela e seguimos para o galpão da Casa de Teatro Maria José de Carvalho, no bairro vizinho do Ipiranga, onde dois palhaços da Trupe Lona Preta, os irmãos e ativistas Joel Carozzi e Sergio Carozzi, apresentaram um espetáculo tão divertido quanto questionador sobre certos pilares da sociedade neoliberal, na qual patrimônio e propriedade valem mais que vidas humanas. As esquetes de Rabiola e Chico Remela, inspiradas nas gagues circenses, levaram alguns anos para serem reunidas e ganharem a forma de uma apresentação clownesca. Isso certamente deu consistência ao enredo; os intérpretes exibem domínio da cena e do ritmo e partituras corporais bastante decupadas, o que favorece o timing das piadas. A experiência nas ocupações do Jardim Guaraú, de onde vem a trupe, se revela no bem-humorado tratamento político dos temas clássicos da palhaçaria e na inclusão de trechos de textos ensaísticos mais cabeçudos, quase como comentários brechtianos, sem perder o riso nem o risco. No final de O Perrengue da Lona Preta, nos tornamos #TodosMacunaíma ao jogar as bexigas de água nas versões esfarrapadas e patéticas da Maria Antonieta e do Luís XVI dos trópicos.

Em seguida, sob o céu escuro e uma garoa fina (que pensávamos extinta pelo aquecimento global), celebramos nosso quase-heroísmo com uma saborosa sopa preparada pelo anfitrião Miguel Rocha, diretor da Companhia de Teatro Heliópolis, e brindamos com um bom vinho carménère. Em tempos de estilhaços e individualismos, o convívio pode ser bastante revolucionário.

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Com uma cambalhota, viramos a noite e caímos no sábado, igualmente frio e cinzento, lá na Rua do Pacificador, perto do Cine Favela, em Heliópolis. Foi a vez dos três palhaços do Bando Trapos, vindos do bairro do Campo Limpo, experimentarem a tarefa de reviver um circo abandonado, numa via em declive, diante de espevitados Macunaímas em seus chinelinhos de dedo. O som de motos e carros disputava a atenção da turma que se aglomerava em volta da cena, de olho nas confusões armadas pelo palhaço “bonzinho” – com o qual muitas crianças se identificaram – contra o “chato” (o terceiro ainda não tinha aparecido).

O que fazer quando a realidade se mostra mais intensa que a história preparada? Manter o texto ou improvisar? Incorporar as travessuras da criançada ou levar adiante a trama ensaiada? Fazer um espetáculo na rua, no instigante desafio de dialogar com uma comunidade ainda pouco acostumada aos códigos teatrais, exige um vigoroso domínio do ritmo. Em alguns momentos, Foi O Que Ficou… Do Bagaço derrapou ao insistir no esquete planejado enquanto a energia do entorno pedia outra resposta. Porém, graças ao carisma de Daniel Trevo, Deco Morais e Joka Andrade, as trapalhadas do Bando Trapos seguraram o interesse da garotada e dos adultos que estavam por lá. E não é que fomos #TodosMacunaíma outra vez?

Cansados, mas felizes, os artistas se despediram de Heliópolis e, a bordo de sua kombi colorida, rumaram para a Casa de Teatro Maria José de Carvalho. Miguel Rocha caprichou no almoço e mais uma vez celebramos o convívio ao redor da mesa. Uma taça de vinho, duas taças de vinho, uma dose da mágica caipirinha de David Guimarães, ator da Companhia de Teatro Heliópolis, e já parecia noite de novo. Lá fora, o céu estava escuro e nublado mais uma vez. Quem, então, assumiu assento ao redor da mesa foram os atores e atrizes do Coletivo Quizumba, num jantar rápido antes da apresentação de Oju Orum.

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Anastácia, princesa africana feita escrava: majestade Oju Orum, mulher do rio que se desdobra em outra tantas mulheres negras do Brasil, atravessando tempos e geografias. Oju Orum que aparece em Alice, adolescente nordestina do início do século XX. Oju Orum que brota na destemida Alzira, mineira de origem, carioca de coração, em seu confronto com os papéis impostos à mulher brasileira “de família” nos anos 1970. Oju Orum que aflora em Anita, jovem da periferia paulistana, às voltas com a descoberta de sua sexualidade na era das redes sociais.

O espetáculo encanta pela mise-en-scène criativa e bem trabalhada, pelo jogo que se estabelece entre os intérpretes e pelos cantos que permeiam a narrativa. A pesquisa sobre a capoeira angola e os elementos da cultura afro-brasileira, um dos focos do grupo, confere potência à cena. A peça é muito bem construída visualmente. A fragilidade, contudo, está no intento de tratar de muitos temas ao mesmo tempo, o que enfraquece a dramaturgia e acaba dilatando desnecessariamente certas passagens. Vez ou outra, o discurso assume um tom didático que, na minha opinião, pouco agrega à obra. No entanto, Camila Andrade, Jefferson Matias, Kenan Bernardes, Thaís Dias, Valéria Rocha e os músicos Bel Borges e Bruno Lourenço cativam pela desenvoltura em cena. Mérito também da diretora Johana Albuquerque e do dramaturgo Tadeu Renato.

Será que Macunaíma bebeu no rio-rebeldia de Oju Orum? Segundo Mário de Andrade, o personagem viveu às margens do mítico rio Uraricoera. E será que foi esse rio que banhou a favela/o bairro/a comunidade de Heliópolis e fez brotar ali tantos outros Macunaímas, com seus chinelinhos de dedo, filhos das Alices, Alziras e Anitas que habitam o Brasil? Eles não têm a preguiça que caracterizava o anti-herói literário, mas conservam a marotice e o desejo de aventura. A bola cai de novo na laje, e o pequeno Macunaíma corajoso não se acanha e escala a parede áspera e inacabada. Passa uma moto, passa outra moto, e o barulho parece ecoar por longos minutos ladeira abaixo, ladeira acima. Os jingles dos candidatos a vereador dão lugar ao pancadão. A mãe chama os filhos: está na hora de comer.

– Quando vai ter teatro de novo?

Nos dias frios e cinzentos, cinzentos e frios, mas também naqueles tão ensolarados, os Macunaímas percorrem Heliópolis à procura das bicicletas lambe-lambe e dos circos abandonados. Talvez estejam buscando, intuitivamente, a inocência daquilo que ainda não sabem. Ou seu lugar ao sol, como os artistas da Companhia de Teatro Heliópolis, que apostam na arte da cena e da presença para estimular esse convívio revolucionário que hoje nos faz tanta falta.

Por: Maria Fernanda Vomero
Fotos: Geovanna Gelan

CRÍTICA: REVOLVER

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Revolver: obra palimpsesta e engravidada de contrastadas e díspares belezas, que não apenas remetem à origem.

Obra absolutamente amparada em diversos expedientes do teatro épico, Revolver, apresentado pelo Coletivo Negro (SP), caracterizou-se em grande e arrebatador momento da II Mostra de Teatro de Heliópolis: a Periferia em Cena. Revolver é espetáculo que tenta recuperar momento de diáspora (e não apenas de povos negros, mas, – e sobretudo – de imenso contingente de gente que se desconhece na condição de história e de origem. A cena é dominada por um imenso baobá (magistral criação de Júlio Dojscar): um totem-configurado árvore, cujo tronco parece encontrar-se engravidado de tecnologia pré-figurante da engenharia genética tão distante e infensa à totalidade das pessoas cujo acesso ao mínimo e essencial ainda espera por eclodir. A árvore-símbolo, assim como a inquietante e bela obra, intenta uma pluralidade de movimentos e suspensões polifônicas em direção à… Espetáculo palimpsesto a cuja nova camada antropológica, estética, poética, épica… apenas remete à seguinte, sem promover uma síntese mais blindante ou acolhedora quanto à explicitação dos sentidos e sensos, grandemente atávicos.

Fruto do chamado processo colaborativo, Revolver, cujos expedientes remetem às proposições seminais vividas e experimentadas, sobretudo, na Escola Livre de Teatro de Santo André (SP) escoram-se em um denso processo de pesquisa e organizam-se, na condição de narrativa épica, em significativo processo de imbricamentos poéticos: no texto, na interpretação, na musicalidade, na visualidade… tudo orquestrado em potência negra-épica-feminina por Aysha Nascimento, em grande momento de criação.

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Denso processo de teatralidade, Revolver estrutura-se em poesia de origem (a obra, do ponto de vista de narrativa, caracteriza-se em uma espécie de cantata repentista), cujos versos e imagens apresentam a criação de um jovem – entretanto, maduro – poeta: Rudnei Borges. A poesia épica apresentada por Flavio Rodrigues e Rafhael Garcia têm momentos de verdadeiro estupor!!! Intérpretes têm amplo domínio de si e do que apresentam, tanto como intérpretes como atores que se posicionam com relação aos assuntos constitutivos da obra. Algumas vezes, a obra se “enrosca” entre a revelação da criação poética e alguma bela imagem estética (e elas são muitas no espetáculo), mas isso, é seguro, não “atrapalha” a criação de uma obra que está a buscar os caminhos poéticos para que a beleza estética venha em sua potência total.

Mais do que “apenas” os caminhos de criação da periferia (e as potências nesse meio são infindas, porque as dificuldades do viver de modo digno são cada vez mais densos e difíceis), ao finalizar com Revolver, a II Mostra de Teatro de Heliópolis: a Periferia em Cena, detona, mais uma vez, seu gatilho em direção ao presente engravidado… Assim como o Brasil-todinho-periférico, Revolver quer – e consegue – “apenas” existir e propor momentos de interlocução que transcendem o estético!

Por: Alexandre Mate *
Fotos: Geovanna Gelan

* Professor-pesquisador do programa de pós-graduação, do Instituto de Artes da Unesp, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho.

CRÍTICA: UMA SAGA MACUNAÍMICA

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Ficar ou Sair do Meio da Rua?

Uma apresentação teatral na rua costuma ser composta por elementos visuais e sonoros de grande expressão no intuito de atrair a atenção do espectador e seduzi-lo a interromper sua trajetória para dispor de seu tempo, cada vez mais precioso, para apreciar o espetáculo. Nesse sentido, ganha relevância a expressão corporal de atores e atrizes aliada a utilização de suas habilidades musicais e, muitas vezes, circenses.

Entretanto, na tarde fria de sexta-feira 30 de setembro de 2016, Gabriela Fiorentino e Gustavo Guimarães Gonçalves – do grupo Ciclistas Bonequeiros -, estacionaram suas bicicletas dotadas de pequenas estruturas cênicas nas respectivas garupas na calçada da Rua Coronel Silva Castro em frente à Ação Comunitária Nova Heliópolis e, pacientemente, faziam os últimos ajustes nas pequenas instalações que serviriam de palcos em miniatura para a apresentação de Uma Saga Macunaímica – para dar início à Segunda Mostra de Teatro de Heliópolis: A Periferia em Cena.

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Às 16hs, horário marcado para o início da apresentação, um certo clima de estranhamento fez-se presente. Nas calçadas, e na estreita rua o movimento era intenso. Transeuntes, cabos eleitorais (as eleições municipais se aproximavam), motocicletas, carros, policiais e tantos outros seguiam sua trajetória e seus afazeres. Podia-se ouvir proveniente dos bares e dos alto-falantes dos veículos que passavam a trilha sonora ambiente que misturava o que hoje se chama de música sertaneja, com funk e com que também na atualidade se chama de ritmos nordestinos. Mas, quem iria parar e se sentar frente aos minúsculos palcos montados nas garupas das bicicletas?

Organizadores da Mostra e alguns convidados se apresentaram para sentar em banquinhos, colocar fones de ouvido e, assim, foram os primeiros que se colocaram frente às aberturas nas pequenas estruturas cênicas e assistiram às apresentações. Em uma das bicicletas, apenas um espectador por vez ficava frente à adaptação de trechos do livro Macunaíma, o Herói Sem Nenhum Caráter de Mário de Andrade na qual a personagem título enfrentava e vencia o gigante Venceslau Pietro Pietra, o comedor de gente em São Paulo, em uma clara crítica ao frenético e sisudo modo de vida dos habitantes da selva de pedra paulistana e da idealização da máquina que, no sistema capitalista, consome a todos. Na outra bicicleta, dois espectadores acompanhavam as últimas aventuras de Macunaíma na terra e nas águas, até se transformar, no céu, como na criação de Mário de Andrade, na constelação da Ursa Maior.

Aos poucos, a cena das pessoas sentadas em banquinhos, com a cabeça coberta frente a caixas colocadas na garupa de bicicletas, e os anúncios realizados pelos organizadores da Mostra começaram a chamar a atenção dos transeuntes que passaram a formar filas para assistirem aos três minutos de cada apresentação. Contribuiu para o afluxo de público a grande presença de crianças que após assistirem as apresentações, manifestavam claramente o seu encantamento com a experiência.

As instalações nas quais os artistas manipulavam os pequenos bonecos atestavam a sensibilidade e o talento dos criadores do grupo Ciclistas Bonequeiros. Nas pequenas estruturas, cenários eram trocados e até efeitos de iluminação ajudavam na condução do enredo previamente gravado e que estruturalmente transitava entre o épico (narração) e dramático (falas das personagens).

Àqueles acostumados a acompanhar apresentações teatrais na rua, Uma Saga Macunaímica provoca uma instigante reflexão. No lugar da celebração épica, de certa forma grandiosa e que se estrutura na corporeidade dos intérpretes, na música, no humor e no circo para propor uma experiência coletiva de recepção e de reflexão a partir da apresentação de uma ou de várias histórias em experiência que inclui e ressignifica espaços públicos, os Ciclistas Bonequeiros, mesmo na calçada de uma rua muito movimentada, propõem uma experiência artística singular, particularizada, individualizada.

Assim, nos três minutos que cada espectador permanece com fones de ouvido pelo qual entra em contato com a história e fica com a cabeça coberta com um tecido preto, portanto, com toda a sua atenção voltada para a pequena e bem cuidada instalação de representação, um recorte em seu dia é feito e ele é transportado, assim como Macunaíma, para outros universos. Essa é, certamente, uma grande qualidade do trabalho dos artistas do grupo, como atesta a recepção entusiasmada do público, principalmente das crianças, que saem da experiência como se tivessem acabado de presenciar um show de mágica. Entretanto, e aí está o ponto central dessa reflexão, parte desse fascínio não está associada justamente à inesperada possibilidade da vivência, na rua, de uma experiência interiorizada, subjetiva, íntima?

Sim, tirar o espectador da calçada e transportá-lo para a floresta, para as águas encantadas, para o céu, e mesmo para selva de pedra do mundo do romance de Mário de Andrade é um grande feito do trabalho caprichado dos Ciclistas Bonequeiros; mas, e conclui-se essa reflexão com um questionamento, com uma “pulga que ficou atrás da orelha”: Não seria possível, além de transportar os espectadores ao mundo de Macunaíma, fazer o herói sem nenhum caráter dar uma volta pelos lados de Heliópolis naquela tarde fria e, mesmo que só por alguns instantes, comungar com ele e ressignificar simbolicamente algumas peculiaridades do local?

Por: Luiz Eduardo Frin *
Fotos: Geovanna Gelan

* Mestre e doutorando em Artes Cênicas na Unesp. Professor de teatro no Indac – Escola de Atores em São Paulo – SP e na EAC – Wilson Geraldo em Santos – SP. Ator, diretor e dramaturgo.

 

OBRIGADO e VAMOS QUE VAMOS!!!!

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Este ano, realizaremos a MOSTRA DE TEATRO DE HELIÓPOLIS na raça, o que não é novidade pra quem faz teatro.

Mesmo com poucos recursos, nos empenhamos para montar uma programação que refletisse o trabalho que vem sendo desenvolvido por grupos que atuam em regiões periféricas da cidade de São Paulo.

Em 03 dias de evento, apresentaremos 03 peças teatrais, 04 espetáculos de rua, além de intervenções, rodas de conversas e muito mais.

Isso só foi possível graças à generosidade dos grupos convidados e ao precioso apoio de nossos apoiadores, que, por meio de uma campanha na internet, contribuíram financeiramente para o evento.

Obrigado,

Ciclistas Bonequeiros, Trupe Lona Preta, Bando Trapos, CompanhiaDaNãoFicção, Coletivo Quizumba, Família, Companhia do Miolo, Coletivo Negro, Maria Fernanda Vomero, Livy Maria Real Coelho, Rosicler C. Alves, Pedro Ponta, Katia Cipris, Ricardo Inhan, Leandro Lago Santos, Rafael Presto, Diego Renan Alencar Lorena de Freitas, Nerci Correa Junior, Duda Alcantara, Arthur Martins Alves, Eliane de Fátima Garcia Verbena e Oliveira; Vitor Abud, Paulo Fernando Ferreira Silva Filho, Paulo Campos, Ivany Raso e Luciana Rossi.

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