CRÍTICA: OJU ORUM

ANASTÁCIA E AS MULHERES AMORDAÇADAS

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A Segunda Mostra de Teatro Heliópolis, com seu olhar voltado para as obras de teatro da periferia de São Paulo, recebeu no final de setembro e início de outubro de 2016 diversas produções teatrais que ofereceram ao público apresentações e debates gratuitos nas ruas do bairro de Heliópolis e no galpão do Casarão Maria José de Carvalho, sede da Cia. de Teatro de Heliópolis.

Oju Orum, o mais recente trabalho cênico do Coletivo Quizumba, com direção de Johana Albuquerque, que fez sua primeira temporada em outubro e novembro de 2015 no Casarão, foi uma das montagens presentes na Mostra deste ano. O Coletivo, formado por artistas e educadores, surgiu em 2008 e, desde então, tem como proposta a discussão e realização de ações capazes de refletir criticamente as questões artísticas e políticas do mundo contemporâneo. Nesta direção, o foco de sua pesquisa estética está no estudo da historiografia e da formação cultural do Brasil e nos símbolos das culturas africanas e afro-brasileiras. Em 2014, o grupo é contemplado pela primeira vez pelo Programa de Fomento ao Teatro da cidade de São Paulo. Com este apoio foi realizado o projeto Santas de Casa Também Fazem Milagres, que resultou na montagem cênica Oju Orum.

Começamos pela gênese do grupo e da construção da peça para chegar à apreciação crítica da apresentação que assistimos na noite de 01 de outubro de 2016 por ser este um fator relevante que influencia a estética do trabalho. Foi através de uma política pública de cultura, conquistada pela categoria teatral, que o Coletivo teve a oportunidade de desenvolver uma longa pesquisa pedagógica, musical, dramatúrgica e de experimentação cênica que dá consistência à montagem.

Como fio condutor da peça, o Coletivo traz à tona o mito de Oju Orum, princesa Bantu trazida para o Brasil na condição de escrava e chamada, a partir de então, de Anastácia, que teve sua voz calada por uma mordaça depois de se recusar a ter relações sexuais com seu capataz. Numa poética épica, o narrador (como uma espécie de griot), conta um mito africano da criação do mundo, apresentando o rio-mulher Oju Orum, de onde nascem as outras personagens da história. A partir de depoimentos de mulheres de diferentes idades e da pesquisa sobre distintos períodos no Brasil, são criadas as personagens, todas adolescentes: Alice, do começo do século XX, criada no meio rural, que, após sua primeira menstruação, é destinada a se casar e ser mãe; Alzira, mineira da década de 1970, engravida, é expulsa de casa e tenta a vida no Rio de Janeiro e Anita, contemporânea, sofre opressão por conta de sua sexualidade e tem sua particularidade violada com uma foto íntima compartilhada na internet.

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Voltada para o público jovem, que se divertiu muito e acompanhou atentamente a apresentação realizada na Mostra, a peça traz histórias entrecruzadas de quatro mulheres comuns, de diferentes tempos e locais, que tiveram suas vozes silenciadas devido à opressão patriarcal. A partir das histórias dessas quatro personagens, o texto (construído coletivamente, mas costurado e assinado por Tadeu Renato) trata sobre as mulheres periféricas, pobres, negras, que se esforçam por tomar seus destinos nas mãos lutando contra uma sociedade machista e capitalista que as reduz a objetos na vida pública e privada.

Com forte influência da cultura africana e afro-brasileira, o Coletivo (formado por Bel Borges, Bruno Lourenço, Camila Andrade, Jefferson Matias, Kenan Bernardes, Thais Dias e Valéria Rocha) constrói imagens de cunho simbólico. A começar pelo campo de atuação – uma arena no centro do palco, fazendo referência aos terreiros das religiões de matrizes africanas – e pelos figurinos, remetendo o público às figuras dos Orixás. Outro ponto interessante da obra é a direção musical de Jonathan Silva. Ainda numa proposição épica, as canções comentam a cena ou colaboram para o melhor entendimento dela, aproximando o público jovem ao som de ritmos populares, como o samba, o funk e o baião. A peça termina com um caloroso Salve às mulheres da nossa história que, assim como o rio, têm o correr como destino natural.

Por: Beatriz Calló * e  Fernanda Azevedo **

Fotos: Caroline Ferreira.

* Professora de teatro e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP).

**Atriz da Kiwi Companhia de Teatro e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP).

 

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