Olhar crítico sobre os 2 primeiros dias da Mostra
A HORA E A VEZ DOS MACUNAÍMAS
(Ou uma breve crônica sobre o sopro de teatro em Heliópolis)
Naquela sexta-feira cinzenta e fria, as crianças se aproximavam timidamente das duas bicicletas, cada qual equipada com uma caixa coberta no melhor estilo lambe-lambe.
– O que é isso?, perguntavam curiosas.
– Teatro! Sentem no banquinho para assistir à história.
Pouco a pouco, a fila de meninos e meninas crescia ao redor da dupla de Ciclistas Bonequeiros, Gabriela Fiorentino e Gustavo Guimarães Gonçalves, na frente do prédio da Ação Comunitária Nova Heliópolis, situado numa das ruas da favela homônima. Era a primeira apresentação do programa da 2ª Mostra de Teatro Heliópolis, realizada pela Companhia de Teatro Heliópolis e pela produtora MUK. Depois de ver os dois episódios de Uma Saga Macunaímica, a garotada já não queria mais sair dali. Com fones de ouvido, as crianças escutavam a narração de trechos da história de Macunaíma, o herói pouco heróico criado pelo escritor Mário de Andrade, enquanto acompanhavam as aventuras e desventuras do personagem pelas mãos dos bonequeiros.
A estética do lambe-lambe conferiu outra dimensão ao teatro de objetos. Em pouco mais de três minutos, o espectador era transportado a um efêmero universo de fantasia e possibilidades. Talvez a criançada se ativesse menos à narrativa (deliciosa para os ouvidos atentos, vale dizer, porém um tanto sinuosa naquele contexto) e mais à precisa manipulação dos objetos e ao cenário repleto de elementos. Afinal, não era fácil disputar a atenção com os carros e as motos, os jingles de candidatos a vereador e a bagunça dos próprios Macunaímas, quase todos eles usando chinelinhos de dedo. Enquanto alguns assistiam fascinados ao teatro, outros galgavam muros e lajes em busca de suas bolas de futebol. Talvez a imagem que resuma a passagem dos Ciclistas Bonequeiros por aquela rua, naquela sexta, seja a do ágil moleque saltando da laje com a bola recém-encontrada nos braços. Era quase noite, estava quase escuro, e ele conseguiu! Foi assim também com o Macunaíma literário, quando saltou ao infinito.
A saga continuou. Deixamos a favela e seguimos para o galpão da Casa de Teatro Maria José de Carvalho, no bairro vizinho do Ipiranga, onde dois palhaços da Trupe Lona Preta, os irmãos e ativistas Joel Carozzi e Sergio Carozzi, apresentaram um espetáculo tão divertido quanto questionador sobre certos pilares da sociedade neoliberal, na qual patrimônio e propriedade valem mais que vidas humanas. As esquetes de Rabiola e Chico Remela, inspiradas nas gagues circenses, levaram alguns anos para serem reunidas e ganharem a forma de uma apresentação clownesca. Isso certamente deu consistência ao enredo; os intérpretes exibem domínio da cena e do ritmo e partituras corporais bastante decupadas, o que favorece o timing das piadas. A experiência nas ocupações do Jardim Guaraú, de onde vem a trupe, se revela no bem-humorado tratamento político dos temas clássicos da palhaçaria e na inclusão de trechos de textos ensaísticos mais cabeçudos, quase como comentários brechtianos, sem perder o riso nem o risco. No final de O Perrengue da Lona Preta, nos tornamos #TodosMacunaíma ao jogar as bexigas de água nas versões esfarrapadas e patéticas da Maria Antonieta e do Luís XVI dos trópicos.
Em seguida, sob o céu escuro e uma garoa fina (que pensávamos extinta pelo aquecimento global), celebramos nosso quase-heroísmo com uma saborosa sopa preparada pelo anfitrião Miguel Rocha, diretor da Companhia de Teatro Heliópolis, e brindamos com um bom vinho carménère. Em tempos de estilhaços e individualismos, o convívio pode ser bastante revolucionário.
Com uma cambalhota, viramos a noite e caímos no sábado, igualmente frio e cinzento, lá na Rua do Pacificador, perto do Cine Favela, em Heliópolis. Foi a vez dos três palhaços do Bando Trapos, vindos do bairro do Campo Limpo, experimentarem a tarefa de reviver um circo abandonado, numa via em declive, diante de espevitados Macunaímas em seus chinelinhos de dedo. O som de motos e carros disputava a atenção da turma que se aglomerava em volta da cena, de olho nas confusões armadas pelo palhaço “bonzinho” – com o qual muitas crianças se identificaram – contra o “chato” (o terceiro ainda não tinha aparecido).
O que fazer quando a realidade se mostra mais intensa que a história preparada? Manter o texto ou improvisar? Incorporar as travessuras da criançada ou levar adiante a trama ensaiada? Fazer um espetáculo na rua, no instigante desafio de dialogar com uma comunidade ainda pouco acostumada aos códigos teatrais, exige um vigoroso domínio do ritmo. Em alguns momentos, Foi O Que Ficou… Do Bagaço derrapou ao insistir no esquete planejado enquanto a energia do entorno pedia outra resposta. Porém, graças ao carisma de Daniel Trevo, Deco Morais e Joka Andrade, as trapalhadas do Bando Trapos seguraram o interesse da garotada e dos adultos que estavam por lá. E não é que fomos #TodosMacunaíma outra vez?
Cansados, mas felizes, os artistas se despediram de Heliópolis e, a bordo de sua kombi colorida, rumaram para a Casa de Teatro Maria José de Carvalho. Miguel Rocha caprichou no almoço e mais uma vez celebramos o convívio ao redor da mesa. Uma taça de vinho, duas taças de vinho, uma dose da mágica caipirinha de David Guimarães, ator da Companhia de Teatro Heliópolis, e já parecia noite de novo. Lá fora, o céu estava escuro e nublado mais uma vez. Quem, então, assumiu assento ao redor da mesa foram os atores e atrizes do Coletivo Quizumba, num jantar rápido antes da apresentação de Oju Orum.
Anastácia, princesa africana feita escrava: majestade Oju Orum, mulher do rio que se desdobra em outra tantas mulheres negras do Brasil, atravessando tempos e geografias. Oju Orum que aparece em Alice, adolescente nordestina do início do século XX. Oju Orum que brota na destemida Alzira, mineira de origem, carioca de coração, em seu confronto com os papéis impostos à mulher brasileira “de família” nos anos 1970. Oju Orum que aflora em Anita, jovem da periferia paulistana, às voltas com a descoberta de sua sexualidade na era das redes sociais.
O espetáculo encanta pela mise-en-scène criativa e bem trabalhada, pelo jogo que se estabelece entre os intérpretes e pelos cantos que permeiam a narrativa. A pesquisa sobre a capoeira angola e os elementos da cultura afro-brasileira, um dos focos do grupo, confere potência à cena. A peça é muito bem construída visualmente. A fragilidade, contudo, está no intento de tratar de muitos temas ao mesmo tempo, o que enfraquece a dramaturgia e acaba dilatando desnecessariamente certas passagens. Vez ou outra, o discurso assume um tom didático que, na minha opinião, pouco agrega à obra. No entanto, Camila Andrade, Jefferson Matias, Kenan Bernardes, Thaís Dias, Valéria Rocha e os músicos Bel Borges e Bruno Lourenço cativam pela desenvoltura em cena. Mérito também da diretora Johana Albuquerque e do dramaturgo Tadeu Renato.
Será que Macunaíma bebeu no rio-rebeldia de Oju Orum? Segundo Mário de Andrade, o personagem viveu às margens do mítico rio Uraricoera. E será que foi esse rio que banhou a favela/o bairro/a comunidade de Heliópolis e fez brotar ali tantos outros Macunaímas, com seus chinelinhos de dedo, filhos das Alices, Alziras e Anitas que habitam o Brasil? Eles não têm a preguiça que caracterizava o anti-herói literário, mas conservam a marotice e o desejo de aventura. A bola cai de novo na laje, e o pequeno Macunaíma corajoso não se acanha e escala a parede áspera e inacabada. Passa uma moto, passa outra moto, e o barulho parece ecoar por longos minutos ladeira abaixo, ladeira acima. Os jingles dos candidatos a vereador dão lugar ao pancadão. A mãe chama os filhos: está na hora de comer.
– Quando vai ter teatro de novo?
Nos dias frios e cinzentos, cinzentos e frios, mas também naqueles tão ensolarados, os Macunaímas percorrem Heliópolis à procura das bicicletas lambe-lambe e dos circos abandonados. Talvez estejam buscando, intuitivamente, a inocência daquilo que ainda não sabem. Ou seu lugar ao sol, como os artistas da Companhia de Teatro Heliópolis, que apostam na arte da cena e da presença para estimular esse convívio revolucionário que hoje nos faz tanta falta.
Por: Maria Fernanda Vomero
Fotos: Geovanna Gelan