Ficar ou Sair do Meio da Rua?
Uma apresentação teatral na rua costuma ser composta por elementos visuais e sonoros de grande expressão no intuito de atrair a atenção do espectador e seduzi-lo a interromper sua trajetória para dispor de seu tempo, cada vez mais precioso, para apreciar o espetáculo. Nesse sentido, ganha relevância a expressão corporal de atores e atrizes aliada a utilização de suas habilidades musicais e, muitas vezes, circenses.
Entretanto, na tarde fria de sexta-feira 30 de setembro de 2016, Gabriela Fiorentino e Gustavo Guimarães Gonçalves – do grupo Ciclistas Bonequeiros -, estacionaram suas bicicletas dotadas de pequenas estruturas cênicas nas respectivas garupas na calçada da Rua Coronel Silva Castro em frente à Ação Comunitária Nova Heliópolis e, pacientemente, faziam os últimos ajustes nas pequenas instalações que serviriam de palcos em miniatura para a apresentação de Uma Saga Macunaímica – para dar início à Segunda Mostra de Teatro de Heliópolis: A Periferia em Cena.
Às 16hs, horário marcado para o início da apresentação, um certo clima de estranhamento fez-se presente. Nas calçadas, e na estreita rua o movimento era intenso. Transeuntes, cabos eleitorais (as eleições municipais se aproximavam), motocicletas, carros, policiais e tantos outros seguiam sua trajetória e seus afazeres. Podia-se ouvir proveniente dos bares e dos alto-falantes dos veículos que passavam a trilha sonora ambiente que misturava o que hoje se chama de música sertaneja, com funk e com que também na atualidade se chama de ritmos nordestinos. Mas, quem iria parar e se sentar frente aos minúsculos palcos montados nas garupas das bicicletas?
Organizadores da Mostra e alguns convidados se apresentaram para sentar em banquinhos, colocar fones de ouvido e, assim, foram os primeiros que se colocaram frente às aberturas nas pequenas estruturas cênicas e assistiram às apresentações. Em uma das bicicletas, apenas um espectador por vez ficava frente à adaptação de trechos do livro Macunaíma, o Herói Sem Nenhum Caráter de Mário de Andrade na qual a personagem título enfrentava e vencia o gigante Venceslau Pietro Pietra, o comedor de gente em São Paulo, em uma clara crítica ao frenético e sisudo modo de vida dos habitantes da selva de pedra paulistana e da idealização da máquina que, no sistema capitalista, consome a todos. Na outra bicicleta, dois espectadores acompanhavam as últimas aventuras de Macunaíma na terra e nas águas, até se transformar, no céu, como na criação de Mário de Andrade, na constelação da Ursa Maior.
Aos poucos, a cena das pessoas sentadas em banquinhos, com a cabeça coberta frente a caixas colocadas na garupa de bicicletas, e os anúncios realizados pelos organizadores da Mostra começaram a chamar a atenção dos transeuntes que passaram a formar filas para assistirem aos três minutos de cada apresentação. Contribuiu para o afluxo de público a grande presença de crianças que após assistirem as apresentações, manifestavam claramente o seu encantamento com a experiência.
As instalações nas quais os artistas manipulavam os pequenos bonecos atestavam a sensibilidade e o talento dos criadores do grupo Ciclistas Bonequeiros. Nas pequenas estruturas, cenários eram trocados e até efeitos de iluminação ajudavam na condução do enredo previamente gravado e que estruturalmente transitava entre o épico (narração) e dramático (falas das personagens).
Àqueles acostumados a acompanhar apresentações teatrais na rua, Uma Saga Macunaímica provoca uma instigante reflexão. No lugar da celebração épica, de certa forma grandiosa e que se estrutura na corporeidade dos intérpretes, na música, no humor e no circo para propor uma experiência coletiva de recepção e de reflexão a partir da apresentação de uma ou de várias histórias em experiência que inclui e ressignifica espaços públicos, os Ciclistas Bonequeiros, mesmo na calçada de uma rua muito movimentada, propõem uma experiência artística singular, particularizada, individualizada.
Assim, nos três minutos que cada espectador permanece com fones de ouvido pelo qual entra em contato com a história e fica com a cabeça coberta com um tecido preto, portanto, com toda a sua atenção voltada para a pequena e bem cuidada instalação de representação, um recorte em seu dia é feito e ele é transportado, assim como Macunaíma, para outros universos. Essa é, certamente, uma grande qualidade do trabalho dos artistas do grupo, como atesta a recepção entusiasmada do público, principalmente das crianças, que saem da experiência como se tivessem acabado de presenciar um show de mágica. Entretanto, e aí está o ponto central dessa reflexão, parte desse fascínio não está associada justamente à inesperada possibilidade da vivência, na rua, de uma experiência interiorizada, subjetiva, íntima?
Sim, tirar o espectador da calçada e transportá-lo para a floresta, para as águas encantadas, para o céu, e mesmo para selva de pedra do mundo do romance de Mário de Andrade é um grande feito do trabalho caprichado dos Ciclistas Bonequeiros; mas, e conclui-se essa reflexão com um questionamento, com uma “pulga que ficou atrás da orelha”: Não seria possível, além de transportar os espectadores ao mundo de Macunaíma, fazer o herói sem nenhum caráter dar uma volta pelos lados de Heliópolis naquela tarde fria e, mesmo que só por alguns instantes, comungar com ele e ressignificar simbolicamente algumas peculiaridades do local?
Por: Luiz Eduardo Frin *
Fotos: Geovanna Gelan
* Mestre e doutorando em Artes Cênicas na Unesp. Professor de teatro no Indac – Escola de Atores em São Paulo – SP e na EAC – Wilson Geraldo em Santos – SP. Ator, diretor e dramaturgo.
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