O lindo e comovente Kuami, Caminhos para a Identidade, um espetáculo bordado com/por mãos de afeto

por Alexandre Mate.

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A reunião de artistas que formam o Núcleo Abre Caminhos, de São Paulo, nasceu no Núcleo de Dramaturgia da Escola Livre de Teatro de Santo André (situada no ABCD… Paulista). Ali, no processo de criação e de tantas conversas, durante o curso, Adriana Miranda, Cynthia Regina, Ulisses Dias e Vicent Kaoydê, sabendo do que queriam tratar, leem, por indicação de alguém, Kuami, obra da talentosa e essencial Cidinha da Silva, cujos assuntos aproximavam-se das motivações temáticas que interessavam às integrantes do Núcleo, que convidaram Daniel Veiga para adaptar o original. Nascida uma primeira versão, o Núcleo convidou Martinha Soares (encenação) e Valquíria Rosa (criação da musicalidade do espetáculo) para uma atuação partilhada. Nasceu (ou medrou) o lindo espetáculo que contou, ainda, com o lindo e delicado trabalho de Felipe Cruz (figurinos) e a instrumentalidade ao vivo da sensibilíssima dupla de instrumentistas Thainá Oliveira e Victor Mota.

 

Inserido na IV edição da Mostra de Teatro de Heliópolis, o Núcleo se apresentou no teatro da Casa Mariajosé de Carvalho. Repleto de inserções de culturas tradicionais, tanto de África como de certas regiões (que ainda resistem ao lixo da cultura de massa), o espetáculo inicia sua trajetória fora do espaço tradicional de representação, com um canto lindo, com sorrisos cativantes e figurino carnavalizado, absolutamente delicado: encanto à primeira vista.

 

Em tese, a narrativa desenvolve-se em dois territórios distintos: o fundo de algum dos mares do planeta (provavelmente o Atlântico, que “une” o Brasil à África) e em terras africanas, nas quais ainda vivem os elefantes. Janaina vive com sua mãe, que ama e é amada por outra mulher (e tal assunto é apresentado de modo como deve ser tratado o amor: com absoluto respeito), mas, “aventureira”, Janaína parte para conhecer além das águas profundas dos mares, e, em terras secas, encontra-se com o elefantinho Kuami, apresentado pelo talentosíssimo Vicent Kaoydê. Kuami foi separado da mãe, que fora caçada, e está triste. Janaína resolve ajudar Kuami, e ambos partem em busca da mãe, chamada Dara.

 

O espetáculo é harmonioso e (quase) tudo funciona na linda obra, que conquistou todo o público. Havia 5 meninas de idades variadas que participaram da obra com algumas intervenções/sugestões/respostas… todas foram aceitas e se caracterizaram em mote de dialogismo com o elenco. Tal ação manifesta partitura porosa e respeito (escuta desenvolvida) para com o público.

 

No processo de recepção, os aparatos sensíveis foram todos acionados: olhos que se encantavam com o visto; ouvidos que se deliciavam com as sonoridades e criações musicais; afetos transbordados com o trabalho do elenco, que misturou harmoniosamente interpretação, narração e canto.

 

Lindo e comovente trabalho! Que o espetáculo tenha uma longa vida e que consiga chegar, sobretudo, aos corações inflados e inflamados pelo ódio dos tempos (e desenvolvidos assustadoramente a partir de 2016).

 

Alexandre Mate: Doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, professor do programa de pós-graduação do Instituto de Artes da Unesp/SP; pesquisador teatral e autor de diversas obras sobre a linguagem teatral.

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