Ensaio para Dois Perdidos… Muito, muito mais do que um tiro, uma facada ou um beliscão,

por Alexandre Mate.

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Caríssimo Plinio Marcos, faz tempo queria escrever para você. Fui ou tive de adiar meu desejo por vários motivos, sobretudo, em razão do que temos vivido desde 2016. Foi um período desastroso para a democracia, para a cultura, para o ser humano… Foi um período muito difícil. Se estivesse por aqui, estou seguro, estaria triste, revoltado, inconformado.

 

Aproveito para lhe escrever em razão de haver algum prenúncio de mudança significativa e porque, outra vez, tive a ventura de assistir a um espetáculo que toma, mais especificamente, o desfecho de um de seus textos essenciais: trata-se de Dois Perdidos em uma Noite Suja. A obra, usando expressão que conheci com você, foi montada por um coletivo da quebrada, do extremo da Zona Leste de São Paulo, batizado de Éssa Compania (compania, assim mesmo!).

 

Incrivelmente, o seu texto, tão denso, denunciatório, pesado… ganha contornos assemelhados, posto que mergulhado em um país e tempo que só fizeram piorar a existência de gente, bicho e planta. Desse modo, seu original, ao ser tingido com coloração muito mais forte, ganha um clima de ensaio festivo. Festa regada a excelente teatro, muita cerveja, vinho, maconha… acordos e negociações, críticas e elogios ao trabalho do outro, conclamação do público…

 

Júlio Silvério e Aga Orimaf fizeram a dramaturgia de texto. Júlio Silvério, em processo colaborativo, a partir de vivências anteriores e sacação com relação a uma nova estrutura, batizou a obra de Ensaio para Dois Perdidos. Lembra, Plínio, discutimos algumas vezes a utilização da palavra-conceito para nomear uma obra teatral. Assim como em outras linguagens, descobrimos, em processo de pesquisa que, tanto em perspectiva popular ou erudita, quando a palavra aparece, o resultado é sempre multilinguístico. Em teatro, o uso explode em metateatralidade.

 

Ensaio para Dois Perdidos se caracteriza em obra constituída pelo entrecruzamento de ações: a teatral e a futebolística, em realidade periférica; pelo entrecruzamento temático: seu texto, Plínio, e todas as mazelas sociais que construíram este desajustado e injusto país; a criação artístico-teatral, misturando diversas linguagens e revelação procedimentos de feitura, num permanente ir e vir.

 

O coletivo pegou seu drama, Plínio, e transformou-o, por meio de expedientes épico-ensaísticos, em uma obra sofisticada, complexa. Plínio, mesmo sabendo que você não gostava de certas expressões, trata-se de uma obra palimpsesta (isto é, repleta de inúmeras camadas). Então, pode-se afirmar, o caráter palimpsesto, vamos e venhamos, é para quem pode… E o conjunto criador da Éssa Companhia, formada por Aga Orimaf, Jaque Alves, Jéssica Marcele, Jefferson Silvério, Júlio Silvério, Maria Eduarda, Matheus Heitor, como você mesmo dizia: “está podendo!”

 

Durante o debate, com gente admirada pelo espetáculo assistido, e sempre muito emocionado, Júlio Silvério insistiu que aquela era a obra de sua vida. Em razão de tal afirmação segurar o choro do artista, que precisava ralentar a fala, todo o espetáculo podia voltar em suas camadas: ali estava a cenografização, linda e escancarada, com múltiplos símbolos, incontáveis camisetas…, fita crepe figurando as linhas de um campo de futebol, infindos adereços no chão…; a fala inicial de Dinho Lima Flor e de Jé Oliveira (parceiros do coletivo), os momentos e embates entre Tonho e Paco (feitos pelos irmãos gêmeos na vida e na arte: Júlio e Jefferson)…

 

Enfim, Plínio, se se usasse um elástico como metáfora, poder-se-ia afirmar que Ensaio para Dois Perdidos é um elástico estirado ao extremo: obra vulcânica, sem qualquer concessão. Obra sem os “efeitos pastel” (bonita por fora, mas esvaziada de sentidos significativos internamente), aberta, porosa, radical. Ao contrário do que anunciam nos espaços higienizados e comportados, o resultado formal de Ensaio para Dois Perdidos não resulta de estética precária, mas, e fundamentalmente, de estética de voragem!

 

Plínio, tão querido, estou certo, você amaria o trabalho (d)Éssa Compania!

 

Alexandre Mate: Doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, professor do programa de pós-graduação do Instituto de Artes da Unesp/SP; pesquisador teatral e autor de diversas obras sobre a linguagem teatral.

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