Circo Curtição e a Palhaça Cortiça em significativo processo de conquista em uma das vias públicas da comunidade de Heliópolis,

por Alexandre Mate.

Na sexta-feira, dia 4 de novembro de 2022, exatamente na Rua dos Artistas (uma das veias pulsantes) da Comunidade de Heliópolis, a Palhaça Cortiça (Samara Montalvão) apresentou-se na IV edição da Mostra de Teatro de Heliópolis. Palhaça e atriz, imbricadas organicamente na mesma personagem, rodiziaram-se e brincaram, brindando a comunidade heliopolense com sua verve cômica, muito desenvolvida; um senso de predisposição à troca muito acentuado e com o tom certo; uma capacidade de percepção do espaço ressignificado, trazendo o público para mais perto e dentro da obra. A chegança de gente, que parou para assistir ou que foi atraído (transeuntes que passavam apressadamente) ocorreu de um modo carinhoso e maroto. Cortiça e Samara Montalvão, ao utilizarem-se do poder de sedução cômico, proporcionaram, todo o tempo de duração da obra ou pela rápida passagem, um período significativo ao público. Um espaço indistinto foi transformado em um local estético, e este, em um belo território de troca.

 

Em tese, Cortiça apresentou diversos números (ou reprises circenses: magia, adivinhação, transformismo…), mas com uma simpatia e comunicabilidade admiráveis. Em quase uma hora (tempo de duração do espetáculo), em uma fria tarde de primavera, Cortiça divertiu à toda a gente: crianças, jovens, gente adulta e gente velha. Alguns homens de um bar que ficava na esquina da rua dos Artistas, sentados em suas cadeiras na calçadista, não conseguiam tirar o riso do rosto durante toda a apresentação. Os olhinhos brilhantes da atriz, emprestados à contagiante Cortiça, rastreavam absolutamente tudo o que acontecia à volta, reconfigurando os pequenos – entretanto reais acontecimentos – em motivos para a (re)criação cúmplice da cena. Samara tem consciência do espaço transformado e da porosidade do teatro de rua.

 

A desenvolvida consciência de si e de seu fazer, cujo principal alvo é alegrar o público, assemelha-se muito aos trabalhadores e trabalhadoras das feiras livres (e seus pregões sedutórios para trazer o público para comprar em sua barraca) e aos conhecidos camelôs. Homens e mulheres espetáculos…

 

Enfim, a hipotética “simplicidade” da obra ocorre na real complexidade das trocas com o público!

 

Na desenvolvida capacidade artística, talvez se devesse repensar as trocas de roupa atrás de uma “cortininha brilhosa”, que tendem a quebrar o fluxo de sedução, desaquecendo a cena.

 

Alexandre Mate: Doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, professor do programa de pós-graduação do Instituto de Artes da Unesp/SP; pesquisador teatral e autor de diversas obras sobre a linguagem teatral.