Uma carta ao espetáculo Cidade do Sol – Uma homenagem à menina luz: Bairro-Cidade-Mundo, Heliópolis documento de resistência, indignação e força cênico-poética.

por Everton da Silva José.

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SÃO PAULO, 31 DE OUTUBRO DE 2022.

O clima está quente, temperado com Sol e chuva, a garoa fina inunda a atmosfera de uma cidade entre vais e vens de passos, motores turbulentos a rodar, sonoridades e sensibilidades do movimento do cotidiano da maior metrópole do país, Brasil. Estamos em Heliópolis. O risco do clima, das características e previsões temporais, antecipa aqueles e aquelas que ocupam a rua com arte: Chove ou não chove? Molha ou não molha? Haverá Sol a nos aquecer e iluminar? Virá o Sol a nos acalentar com sua presença ilustre?

 

Nesse clima, a artistada do espetáculo Cidade do Sol – Uma homenagem à menina luz, um espetáculo com poética fundada na concepção teatral documentária e vinculada aos processos estéticos da rua, foi preparado/ construído coletivamente para ser realizado. O espetáculo, em sua nomeação, coloca em movimento o processo de poetizar o nome do lugar/bairro em que o grupo Impacto Agasias faz suas raízes, Heliópolis. Este bairro ou cidade, bairro-mundo, etimologicamente, traz a compreensão simbólica de uma Cidade do Sol, fonte e base de diversos viventes. E o Sol, assim como o espetáculo, veio a iluminar e cintilar com sua presença entre as falhas das nuvens e os recortes dos documentos do passado.

 

A diretora do espetáculo Carolina Angrisani, com sensibilidade e sabedoria, alumia em sua coordenação cênico-poética um conjunto de movimentos, documentos, memórias, sonoridades, elementos sensíveis e afetivos na condução das marcas e sentidos do passado impressas na história de um bairro-cidade-mundo, em que revela o cintilar crítico e político de se vincular aos processos sócio-históricos da constituição de Heliópolis. O processo documental enraizado nos elementos materiais utilizados pela diretora e os artistas Caroline Varani, Henrique Sanchez, Kátia Bocalon, Rafael Santos, Suelen Zamora e Wallace Borges conferem outra visão para a história e as afetividades desse lugar. Faz-se, assim, a metáfora do Sol que emerge como fonte de força, luz e vida a guiar olhares para outros mundos possíveis.

 

A dramaturgia de texto é épica e tem sua narrativa estruturada em episódios, os quais podem ser vistos de modo interdependentes ou independentes, característica fundante de uma forma anti-ilusionista e contra hegemônica (ligada ao drama burguês). O fio condutor da obra se constitui de procedimentos e recortes de epicização de ações históricas e poéticas, em que se destaca a intensidade dos documentos, narrativas e discursos repletos de poesia, insubordinadamente, crítica. A Cidade do Sol convoca dimensões de astúcia cênico-poética com enraizamento responsável e memorável sobre um bairro-cidade-mundo, Heliópolis.

 

No conjunto da obra e de sua encenação pelos espaços, se observa na materialidade da cena diversos jogos corpóreos-espaciais com movimentações e andanças a riscar o chão com fotografias, lenços, giz, corpos, sons. Os documentos utilizados colocam em foco a complexidade das narrativas do cotidiano, traceja o chão da história com documentações de um bairro-cidade-mundo que incorporam vidas inauditas como enfoque e forma de enredo a ser reconstruído artisticamente, esse elemento se evidencia na homenagem conferida à Leonarda, a menina luz, jovem que teve a sua vida ceifada por um ato de feminicídio no ano de 1999.

 

No conjunto da obra deve-se destacar o testemunho das resistências promovidas pelo bairro, em que o processo educacional da Escola Municipal Campos Salles e seu projeto educacional de bairro educador conferem delineamentos fundantes para uma reconstrução no presente para o presente, a traçar um novo olhar para o futuro por meio do ato educacional. Nesse processo são ressaltados dois professores dessa instituição, Orlando e Braz, os quais tornaram-se fonte documental e sensível para o processo criativo do grupo.

 

Entre cantos, entidades, ritmos, planos espaciais, cadeiras, sons escolares, tecidos, está o chão molhado das águas que inundam o bairro, promovido e marcado, historicamente, pelo descaso público. O espetáculo de rua do Impacto Agasias apresenta em sua estrutura em atos modos de reviver, revisar, revolver os olhares, os quais nos leva a aprender a ver de novo de modo a desmistificar as imprecisas narrativas, as quais inundam e inquietam o público. Os atos, anunciados em estilo épico-popular, determinam uma capacidade poética de síntese. Os atos são nomeados da seguinte maneira: (Prólogo) Arar a terra; (I) Semente; (II) Raízes; (III) Adubo; (IV) Irrigação; (V) Muda ; (VI) Resistir; (VII) Concreto; (Epílogo) Girassol. Essa estrutura recebe tratamento delicado e cuidadoso, em que é preciso ressaltar o poder simbólico da presença de uma flor, um girassol a florescer nos olhos e corações presentes no epílogo da obra.

 

Cidade do Sol, Heliópolis, bairro-cidade-mundo é apresentado pelo Grupo Impacto Agasias com profunda delicadeza em que arar a terra, resistir aos grileiros, marcar as origens nordestinas dos viventes, denunciar o feminicídio sofrido por Leonarda, na condição simbólica de muitas mulheres, o ato da caminhada da paz realizada no bairro, a perspectiva solidária de irrigar os corações entre as minas e as bicas de água, sobre a alegoria dos tecidos que se transformam nas águas de Iemanjá, entre o concreto e os muros que separam as cidades e vidas, lá está o teatro e a sua força política, crítica e sensível requerendo assim atos de luz, de iluminação dos fatos, dados e fados com exímia maestria.

 

À todas as gentes que requerem um lugar no mundo e contra as opressões, Cidade do Sol homenageia uma menina, um bairro e suas forças, narrativas e repertório mnemônico-histórico, conferindo força, significados e sentidos ao passado de um bairro-cidade-mundo visto, pela lente da ordem impetrada nos poderes estruturais da sociedade como incriminado e discriminado, isto é, visto de fora. Entretanto, por outro lado, para aqueles que lá estão e estiveram no ato de conviver e construir um outro lugar, se irradiam outras dimensões que imprimem resistência, luta e força social na transformação humana do mundo.

 

O teatro documentário do Impacto Agasias alumia os eventos, memórias e lembranças de gerações diversas e, desse modo, se torna espetáculo-documento de um milhão de metros quadrados e mais de 200 mil habitantes e suas luzes próprias, comunitárias. Viva a força popular e as suas táticas de sobrevivência! Se posso desejar algo após esta carta crítica, é que o espetáculo possa ser apresentado a milhares de espectadores e que estes possam tomar conhecimento e afetividade, assim como eu, ao ter contato com o luzir da obra assistida. Viva Heliópolis e as suas formas de resistência cotidianas e (de natureza) seculares! Finda esta carta grato pela montagem do Grupo Impacto Agasias e pela experiência teatral de significativa importância presente na IV Mostra de Teatro de Heliópolis.

 

São Paulo, Heliópolis, 31 de outubro de 2022

 

Everton da Silva José atua como pesquisador, crítico, artista e professor. Doutorando no PPGA-IA-Unesp-SP sob orientação do professor Alexandre Mate. Desenvolve suas práticas no campo da história do teatro, estética e política, tendo como enfoque o estudo do teatro brasileiro.

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