Caio do Céu… Um espetáculo de esgrimismos³: Caio Fernando de Abreu como a espada (na tela) e Deborah Finocchiaro como o fio cortante da espada (nas cenas)

por Alexandre Mate[1].

caio do ceu

Foto: Roberta Amaral

Os sentidos contidos na palavra periferia e seus tantos derivados, como periferismo/ periférico/periférica…, é ambíguo, complexo, e sua traduzibilidade, apartada das questões relativas à geopolítica, tende ao retórico. O Brasil, sem exceção, insere-se na periferia do mundo. Algumas pessoas têm tal consciência, outras se creem distantes de poder ser inseridas em tal categoria. Enfim, sem apresentar explicações aprofundantes (porque não seria aqui o espaço para isso), e tomando como determinação, então, o conceito de periférico, entendendo-o como tudo aquilo que transcende a ideologia, os padrões morais, os paradigmas (e, em artes, a estética das formas) hegemônicos ou das classes dominantes, o espetáculo Caio do Céu (cá entre nós, que deslumbramento!) toma como mote os desafios da prosa visceral, cortante, sobretudo, cronística e crítica de Caio Fernando de Abreu.

Caio Fernando de Abreu (1948-1996)  foi um autor de obras belíssimas e absolutamente surpreendentes. Sua produção literária (em várias estruturas composicionais: conto, crônica, poesia…) basicamente foi escrita enfrentando todos os tipos de proibição e coerções decorrentes da ditadura civil-militar brasileira. Enfrentar todos os tipos de impedimentos impostos pelos militares e seus agentes (ou representantes) civis, além de coragem, demandou muita astúcia e sagacidade para esgrimir as palavras. As obras de Caio Fernando de Abreu não se deixavam esquadrinhar por falsos pudores, e o criador não postergou a gerações futuras a tarefa de apresentar retratos contundentes de seu tempo. Nascido em Santiago/RS, mas frequentador dos becos do mundo, sobretudo aqueles que enclausuravam os “diferentes”, Caio enfrentou todos os seus algozes trazendo paisagens sociais e pessoais de gente “desajustada”, como ele, apontando suas angústias, medos, violências a que estava exposta. Caio ousou assumir-se homossexual e escreveu, também, de modo bastante contundente e cáustico, sobre si mesmo e seus “semelhantes de preterição”.

Caio do Céu (acesso à obra por meio de teatro filmado) estrutura-se tomando um conjunto de expedientes do teatro épico: poética, onírica, epifânica e inventivamente orquestrados por meio da direção impecável do veteraníssimo e mestre Luís Arthur Nunes. Possivelmente, por intermédio de trabalho colaborativo, a obra colige três abordagens narrativas: a prosa falada ao vivo pela atriz, com algumas participações de seu companheiro de cena (e também instrumentista Fernando Sessé); a prosa (fruto de entrevista e por meio de projeções, com destaque às falas do próprio Caio Fernando de Abreu; projeções de diversas naturezas nas imensas cortinas de tule (que têm várias funções no espetáculo) e que caracterizam, também, uma tela de projeção. Na bela obra, todos os elementos composicionais estão rigorosamente integrados: musicalidades; figurino inspirador em tons pastéis esvoaçantes, curtos, compridos… de Antonio Rabadan.

Deborah Finocchiaro (Companhia de Solos & Bem Acompanhados/RS), atriz maravilhosa, completa (que não quer sair de Porto Alegre para vir para os ditos “centros” do país….), apresenta-se em plena potência de todas as suas capacidades expressivas. Narra e vive, a partir de textos surpreendentes de Caio Fernando de Abreu, diversas personagens: pura potência encantatória!! Maravilhoso vê-la em cena, seduzindo-nos com seu trabalho. A atriz (en)canta, acalanta em assombros, faz-nos estremecer diante da beleza.

Espetáculo encantatório que presta tributo e referência ao Caio Fernando de Abreu e aos tantos outros Caios (leitores ou não de Clarice Lispector, autores ou não de obras tão urgentes e necessárias). Para finalizar esta sucinta análise crítica de obra tão poderosa e (periférica, sim!), parafraseando o final do espetáculo Caio do Céu (porque os tempos são muito sombrios, mas voltaremos a andar de mãos dadas e haveremos de amanhecer): “Amém! Amém! Amem!!! Amem!!!

[1] Doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, professor do programa de pós-graduação do Instituto de Artes da Unesp/SP; pesquisador teatral e autor de diversas obras sobre a linguagem teatral.