Macacos: O teatro a contragosto e o engasgado dissabor de uma história desbotada

por Everton da Silva José[1].

macacos3

Foto: Noélia Najera

A Cia do Sal traz à cena da 3ª Mostra de Tetro de Heliópolis o engasgado dissabor de um projeto de apagamento da história do povo preto, a história não dita e não monumental, uma história em estado de urgência. Na obra Macacos a concepção dramatúrgica, direção e interpretação é conduzida por Clayton Nascimento que conta com as parcerias de Vinicius Bogas, Danielle Meireles e outros provocadores. Nela se presencia uma robusta crítica social e histórica, artisticamente incisiva e, sobriamente, contundente.  A obra reorganiza os afetos e fatos ao intensificar a presença do corpo preto na cena em suas pungências. Macacos é uma obra nada doce para os paladares embranquecidos, longe de ser uma fantasia animalesca e raivosa, ela transpira a inteireza preta da revolta inquieta dos muitos apagamentos, portanto, na sutileza visceral do artista se constrói uma obra cênica de menções históricas, mas de uma outra história, aquela das vozes, corpos, sonhos e inumeráveis trânsitos das pessoas pretas. No teatro, a história institucionalizada passa a ser o chão que deve ser “enegrecido”, “escurecido”, “pretejado”.

Clayton Nascimento, artista, ator, pessoa preta, indaga e questiona os olhos atentos aos seus movimentos: “Quando você viu um monólogo de uma pessoa preta?”. A resposta fica à responsabilidade dos que a ouvem. A construção dramatúrgica aponta uma astúcia dos saberes ancestrais e desponta contradições com exímia ironia, mas sem deixar de ser fundamentada e dilacerante. A dramaturgia rasga as narrativas hegemônicas do povo branco, rasga a carne da história branca e esbanja sagacidade no que diz respeito a compreensão do apagamento das lutas e resistências pretas. A obra apresenta estruturas narrativas constituídas por fatos, vozes, dados, gestos, transpiração, expedientes épicos materializados e o rubro sangue preto e indígena que escorre nas veias deste país, Brasil. A proposta dramatúrgica desvenda sua hibridez ao reunir vozes episódicas dos não vistos, não lembrados, dos esquecidos, dos incriminados e marginalizados. Mas, antes de tudo, Macacos é uma obra que retira do silêncio a trágica história desbotada de um país que praticou e pratica o genocídio preto em suas instâncias legais, penais, policiais, educacionais, sociais e econômicas. Não é acaso, é um projeto.

A encenação da obra não deixa de ser rigorosamente provocadora. Clayton Nascimento instaura um jogo cênico que animaliza o próprio corpo evidenciando as contradições fetichistas sob os corpos pretos, embrutecendo-os e cristalizando-os em animalidades. Macacos enraíza-se na criação de uma cena histórica, convoca os olhares para o corpo do artista que vive e impregna de potências a cena despida de ingenuidades.

Clayton Nascimento e suas gentes narradas, relatam e escovam a História didaticamente oficial, não somente a contrapelo, mas a contragosto das hegemonias brancas e detentoras do poder. A arte da cena transforma-se em mãos que materializam brutalidades com a sabedoria e a lucidez que não faltam àquelas gentes que se mantêm vivas e insubordinadas aos saberes institucionalizados. A obra visita, sem ser convidada, o lastro cruel e invisibilizado das narrativas dos corpos indesejáveis, sabemos no estado de coisas quais são eles. Desse modo, Macacos arquiteta uma criação artística que desafia os saberes petrificados e, de modo contundente e convocatório, materializa a necessidade de uma outra história, uma história que seja “escurecida”, preta.

Vocês sabem como irão ser chamadas essas gentes que tentarão escurecer a História?

[1] Professor-artista, licenciado em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Ouro Preto – MG (UFOP), mestre pelo programa de pós-graduação em Artes Cênicas da mesma instituição. Doutorando no programa de Pós-graduação em Artes da Unesp sob orientação do professor Alexandre Luiz Mate.