Constância – a aridez estrutural de um Brasil, e não apenas sertanejo – retratado por meio de poética emocionante e teatro admirável

por Alexandre Mate[1].

Contância

Foto: Luiza Saad

A obra foi batizada com um título compreendido por uma só, entretanto, ambígua palavra. Leio Constância na condição de um substantivo feminino? Entendo constância como uma palavra que alude / refere-se a repetição, reiteração, permanência? Permanência de algo bom ou de algo ruim?! Possivelmente, depois de dois minutos de obra (comovedora e excepcional), as hipóteses criadas percebam, sem qualquer contestação, a interpretação de algo estruturalmente ruim e perverso! Sertão, feminismo, fé, consciência alimentada por esperança, sevícias diversas, permanência de injustiça com gente e bichos… Aliás, bovinos também aparecem e manifestam-se na obra. Talvez para apresentarem seus pontos de vista adversos àquele dos humanos, segundo os quais eles não passariam tanta fome como os humanos… Em uma polifonia de ladainhas de seres vivos (bichos e gentes), nos sertões distantes, a fome é crônica, estrutural e permanente…

Constância é uma crônica de infindos processos de deambulação. Ao se permitir fazer parte do rito de acompamento da/na obra (assemelhada aos procedimentos de processionalidades religiosas), por intermédio de diversas e articuladas formas narrativas, se é conduzido/a por duas atrizes excepcionais. No imbricamento de polifonias de oralidades distintas, duas mulheres, em agigantamento (porque sabem e acreditam no que expressam), a viagem-paisagem roseana conduze-as ao metamorfoseamento, em arrojos poéticos vocovisuais profundos. As guias do espetáculo conduzem – a quem se concede – a uma “viagem ao inferno” da pobreza e de todo tipo de atentado concreto à humanidade, vestem-se, depois de tributos às ancestralidades familiares e religiosas à condição de contadoras/ cantadeiras/ rezadeiras/ carpideiras/ oficiantes (no sentido religioso)/ homens-mulheres-bois/ gente oprimida e gente opressora. Obra trilinguista (português, vocábulos/expressões indígenas e falas em alguma dos idiomas de África). Obra que colige em oficiamento religioso, sobretudo em estado de gira, duas entidades com aterramento poético e cultural exemplares.

No debate ocorrido na geladíssima noite de 30 de julho de 2021 (frio para nós que estávamos mais ao Sul), a talentosíssima criadora da dramaturgia de texto e da dramaturgia de cena, Joana Marinho (que trabalhou por mais de 10 anos na referencial Companhia Ensaio Aberto/RJ) reitera as informações contidas nos materiais de divulgação. Apesar de os sinais de vida, decorrentes de tanta e estrutural exploração, estarem fracos, a gente oprimida, pisada, explorada e subjugada está viva, respira, tem sonhos, tem tradições ancestrais e, em seus corpos, a manifestação da força. A mesma força ancestral que leva qualquer fêmea, nas disputas pela sobrevivência pela vida, a enfrentar os algozes de suas crias, principalmente.

Do ponto de vista estético, a obra estrutura-se a partir das determinações e expedientes do épico. Trata-se de uma obra de resistência, que traz à tona lembranças espetaculares e exemplares do universo de Guimarães Rosa; do espetáculo Tempo de Espera, do saudoso Aldo Leite (São Luís/MA); das encenações da Companhia Amok Teatro/RJ (Stephane Brodt consta da ficha técnica), da já mencionada Ensaio Aberto; da inesquecível Vau de Sarapalha, do Piollin Grupo de Teatro (João Pessoa/PB), Graciliano Ramos, sobretudo em Vidas Secas, João Cabral de Melo Neto e sua Vida e Morte Severina, Newton Moreno e sua Agreste, João Ubaldo Ribeiro e seu Viva o Povo Brasileiro, das obras-denúncia de Grace Passô, Maria Shu, Lourdes Ramalho, Luh Maza… Enfim, teatro de resistência, obra épica de aterramento e denúncia, profundos.

Claudia Ribeiro e Joana Marinho, filhas de ancestralidades étnicas e artísticas também, por meio de suas criações, materializam estética e encantadoramente a obra. Constância, pela força ancestral, pelo conjunto de mistérios que carrega (que pode até se desconhecer, mas que está plasmado em nós), como aparece mais ao final da obra, apresenta-nos um aboio sertanejo, na condição de um “polígono de vários lados”, glauberianizado, como – quem sabe – precisa fazer!

[1] Doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, professor do programa de pós-graduação do Instituto de Artes da Unesp/SP; pesquisador teatral e autor de diversas obras sobre a linguagem teatral.