Caindo na real

por Gilberto F. Martins[1].

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Foto: Roberta Amaral

Para quem foi leitor(a) e jovem na década de 1980, a obra ficcional de Caio Fernando Abreu (1948-1996) certamente deixou impressões definitivas, por estabelecer e formalizar uma espécie de ponte, de conexão entre duas gerações – quando este termo, inclusive, ainda era utilizado para se referir também à produção artístico-literária. Por um lado, seus textos traziam temas e motivos sob a ótica da Geração de 70, com desdobramentos de um ethos estético-ideológico que amalgamava espírito de comunidade, amor livre, valores e práticas orientalistas, desbunde, expansão da consciência (fosse pela drogadição, ou via yoga, macrobiótica e meditação), misticismo new-age e astrologia, religiosidades afro-brasileiras e budismo, figurinos hippies e perfis andróginos; por outro, era uma literatura que já deixava entrever – como efeitos colaterais dos embates contínuos e aniquiladores com o regime de exceção instalado no país pelo golpe civil-militar de 1964 e seu endurecimento pós-68 – certo arrefecimento combativo (resultante também da lenta e gradual abertura política), logo convertido em vazio existencial, mal disfarçado por comportamentos recorrentes de reclusão e isolamento, os quais gestavam (re)ações bem pouco coletivas, abafadas pelo cansaço melancólico e sem projeto que parecia inevitavelmente conduzir ao culto do Eu e ao fracasso de relações afetivas falidas… Tudo meio dor-de-cotovelo, denso, malparado, ao som de Angela Ro Ro, Simone e Billie Holliday…

Sim, porque naqueles anos, aquilo que se convencionou entender por alta literatura, mais estetizada e elaborada, já flertava com a cultura de massa e a invasão do pop, e os produtores de sentido mais reconhecidos assumiam querer fazer parte da “sociedade do espetáculo” e aderir ao consumo compensatório, embora numa conexão ainda meio destacada da geral por vir embalada com sacolas estilosas do mercado da indústria cultural. Lia-se Caio F., grifavam-se seus livros, copiavam-se trechos longos nas agendas e cadernos estufados de lembranças e confissões, identificavam-se os sensíveis e os legais por aquilo que liam-viam-ouviam, presenteando-se com um volume de Morangos mofados (livro de 1982) aqueles(as) com quem talvez fosse – excepcionalmente! – possível conviver e estabelecer laços de cumplicidade.

Além da produção frequente de crônicas em jornais e revistas, o escritor gaúcho publicou contos, ficção longa, algumas peças de teatro (de autoria solo ou em parceria com Luís Artur Nunes). Sua dramaturgia vai da narrativa fabular para crianças (A comunidade do Arco-Íris) e da adaptação de um romance de Lya Luft (Reunião de família) ao exercício paródico com a estrutura do melodrama (A maldição do Vale Negro) e a esquetes dialogados, encerrando-se com um monólogo baseado em Cervantes (O homem e a mancha), dedicado a Clarice Lispector, que o chamava de Quixote.

Levar hoje os textos de Caio Fernando Abreu à cena, ao palco, é tarefa que demanda respostas a algumas questões, as quais podem ajudar, no mínimo, a esboçar critérios de seleção (e – por que não? – a fornecer suporte para apreciações críticas): qual(is) Caio(s) apresentar às novas gerações do século XXI, sem que ele pareça datado e até meio elitizado, por suas experiências de intelectual de classe média? Como contemplar as expectativas de seus leitores fiéis, sem que isso redunde em culto personalista e idealização nostálgica? Privilegiar o estilista da palavra e o criador de potentes personagens (inclusive já levadas ao teatro e ao cinema), ou o criador preocupado em estabelecer uma comunicação mais direta com seus interlocutores semanais na imprensa? Se os há, quais limites não avançar, de modo a não restringir o alcance estético de sua produção a um público específico, identificado com bandeiras LGBTQIA+ e, o que seria pior, para que a homenagem não redunde em exposição apelativa que sobreponha a biografia à obra, com o risco de resultar em apreciação movida tão-só pela comiseração, frente às imagens do corpo careado de um autor homossexual martirizado pelos efeitos da AIDS, em meados dos anos 1990?

Deborah Finocchiaro, da “Companhia de Solos & Bem Acompanhados” (RS), apoia-se na parceria com Luís Artur Nunes e arriscam: conjugando talento e experiência de ofício, intimidade e vínculo afetivo com o autor e sua obra, criam a peça Caio do céu, que teve sua estreia em Porto Alegre em 2017. Selecionado para a “III Mostra de Teatro Heliópolis” (2021), o trabalho encara novo desafio, ao ter de enquadrar sua opção por uma linguagem híbrida – com encenação (a qual ela divide com Fernando Sessé e Marcelo Ádams), música ao vivo e projeção de vídeo, tanto de cena gravada para tal, quanto de teor documental, trazendo depoimentos de Caio F. –, agora em formato virtual, decerto a ser apreciado por muitos em pequenas telas de seus celulares, tablets ou laptops. Não é pouco! Afinal, grande parte dos expedientes mobilizados pelo grupo parece convergir para algo como um tributo, de impacto emocional garantido por certa monumentalização da figura e do discurso do homenageado.

Os textos selecionados por Deborah e Luís acabam por trazer à cena um Caio um tanto solipsista, afeito ao monólogo, por vezes declamatório e doutrinador, quando se punha a reclamar do real e insistir – quixotescamente? – em clamar por espaços de liberdade irrestrita e sem dolo, anteriores à expulsão de quaisquer idealizados jardins (que no fim da vida volta aliás a cultivar, no seio da família e em sua terra natal, visando à autocura). Assim, a peça da Companhia de fato re(a)presenta fielmente uma das facetas ou dimensões da obra, esbarrando, no entanto, naquilo em que nela sabe a individualismo aburguesado, autocentrado, narcisista e blasé – cujo discurso lamenta a Falta por meio do excesso (nas cenas iniciais, por exemplo, a música parece brigar com a palavra, a criar ruído, dispersando o foco de atenção, tal como as tantas referências culturais que inflavam e sobrecarregavam os belos parágrafos de Morangos), propondo como saída uma utopia totalizante, sem materialização histórica (“Amém, amem!”) – e talvez até com alguma concessão ao kitsch. Os expedientes teatrais epicizantes põem em xeque o diálogo e a narratividade dramática, entretanto sem serem igualmente mobilizados para dialetizar produtivamente o ponto de vista dominante (porque Voz reverenciada): afinal, quando e se houver impasse e dissidência, “tudo é passível de uma outra interpretação”. Tudo?!

O belo desenho de luz de Leandro Ross Pires (combinando a palheta de cores amarelo, branco e dourado, em celebração a Oxum), assim como o requinte dos figurinos (de Antonio Rabadan) e da cenografia – que equilibra a verticalidade das cortinas e cabos com cabides e a horizontalidade da mesa ao centro – não perdem força quando filmados e reproduzidos em bocas de cena mais frias e menos propícias, impostas pela radicalidade da situação pandêmica e sufocante que vivemos. Sendo, porém, também de isolamentos, crises, distanciamentos e impasses e epidemias que sua obra ficcional e jornalística trata, e com tanto passado que temos pela frente, nada mal poder ouvir, rever e voltar a ler Caio Fernando Abreu, em suas diversificadas dicções. Então tá, Caio, assim seja.

Ora iê iê ô! Evoé! Etc.

[1] Gilberto Figueiredo Martins é, desde 2006, professor de Teoria da Literatura do curso de Letras da UNESP, em Assis. Graduado em Letras pela USP, onde concluiu seu Mestrado e Doutorado em Literatura Brasileira, realizou seu estágio de Pós-Doutorado na UNICAMP. Fez Especialização em História das Religiões e Religiosidades, na UEM (PR), e em Direção e Atuação, na Escola Superior de Artes Célia Helena (SP). É autor do livro Estátuas invisíveis Experiências do espaço público na ficção de Clarice Lispector (EDUSP/Nankin, 2010) e de ensaios sobre literatura e teatro.