A Casatória c’a Defunta: espetáculo maravilhoso que reedita a “lógica popular” contida no adágio segundo o qual: um mais um é sempre (infinitamente muito) mais que doze

por Alexandre Mate[1].

Foto: George Vale

As classes dominantes espalhadas e fincadas em todo tipo de reduto, alguns dos quais também chamados de países (repletos de bandos de fieis camareiros e serviçais), e sempre atentas à manutenção dos estratagemas que incitam aos pressupostos contidos no (des)conhecer para dominar melhor, tem impedido, por todos os modos, o acesso às mais variadas e distintas formas de manifestação artísticas não balizadas a seus interesses ideológicos (e dominatórios). As formas populares de cultura em um país – permanente e estruturalmente colonizado – das dimensões e como se caracteriza o Brasil, por meio de estratagemas perversos, sequer documenta tais manifestações. Mesmo assim, porque a astúcia e as táticas de sobrevivência de gente localizada nas palafitas das margens da história, sem pedir permissão para viver ou existir, manifestam-se, nos processos que compreendem às disputas simbólicas, de narrativas, de falas, de memórias, de etnias, de ancestralidades… Pois é, mesmo com todas as dificuldades e interdições próximas ao impedimento, às desclassificações “permanentemente de vez em quando… quase sempre”, por que se está vivo, é possível topar com obras que nos fazem perder o fôlego e nos enchem de felicidade, de encantamento e de alegria. Obras que, apesar de toda as balelas propagandísticas no sentido de fazermos parte de um mundo globalizado (que impõe o inglês e a ideologia liberal), nos desviam da condição de rebanho e nos orientam com relação àquilo que de melhor e mais emocionalmente nos caracteriza.

A deliciosa e requintadíssima A Casatória c’a Defunta – apresentada pela Cia. Pão Doce de Teatro, de Mossoró/RN – é uma obra “simples” na aparência, mas sofisticada e requintadíssima demonstração dos incontáveis e emocionantes sentidos estético-comunicacionais contidos em sua manifestação e que tendem a nos indicar a matéria fundante de que somos feitos. Trata-se de uma obra “afinada” às lições e práxis de mestres e mestras da cultura popular e cuja existência corresponde, portanto, ao tempo da humanidade. Tempo de resistência de todas as gerações que tiveram de driblar as perseguições, os escorraçamentos, as expulsões, os genocídios, as tentativas de apagamentos, os impedimentos de existir e manifestar-se, as desclassificações…

Vamos, então, à obra. Decorrente do processo pandêmico e dos impedimentos da presença em partilhamento, depois de todos os choques, artistas das artes da presença têm buscado (assim como as formas populares sempre o fizeram) estratagemas táticos de sobrevivência. É possível assistir a espetáculos filmados (ou gravados); espetáculos híbridos que coligem procedimentos teatrais aos cinematográficos; espetáculos teatrais cinematográficos (a linguagem fílmica “dominando” o resultado)… e obras que, como  A Casatória c’a Defunta, assumem o próprio formato da tela virtual para, a partir dela, reenquadrando-a e refuncionalizando-a, apresentar um espetáculo-festa! Vitória do espírito jocoso e de reinvenção permanente das formas populares, que jamais pediram ou pedirão permissão para existir. Portanto, louvo de modo emocionado o elenco maravilhoso pela versão (dita) remota. Então, parafraseando tantos mestres e mestras: vocês são dignos da terra que pisam e de onde vêm!!

A obra insere-se na forma do charivari (espetáculo-festa, de caracterização popular para glosar algum poderoso/poderosa), nesse caso, ao começar com uma deslumbrante Incelença, toma como “protagonistas” Maria e Afrânio, que vencem os familiares, a comunidade próxima e as personagens do mundo dos mortos… Trata-se de uma narrativa popular (fundamentada em contos de tradição popular) cujo mote pressupõe a astúcia vencendo todos os tipos de opressão. O final feliz da saga de impedimento do amor entre o casal, que inicialmente está condenado a contrair núpcias, mesmo sem se conhecer, decorre da estrutura fundante das formas populares que se fundamenta em intrigas e não em conflitos… A Casatória…, por suas raízes fundantes, é obra de forma (união da estrutura e abordagem de conteúdo) épica. A narrativa – repleta de deliciosos adágios populares – é dividida em episódios, cuja divisão ocorre pelos assuntos e tipos de personagens a falar; as personagens são alegóricas e apresentam-se por meio de coros distintos (familiares, comadres, contadores e contadoras, personagens do mundo dos mortos…), aliás, no concernente aos contadores e às contadoras, a narrativa é apresentada pelas personagens, que se manifestam com relação ao assunto; pelos atores e atrizes, revelando interessantes camadas de metateatralidade da obra.

Além dos destaques apresentados, e revisitando com entusiasmo a obra, é preciso louvar o conjunto de criadores e criadoras: trata-se de um trabalho coletivo absolutamente afinado e orgânico em todos os detalhes. A criação da musicalidade por Romero Oliveira é notável, tanto na criação das músicas como no da dramaturgia sonora “arredondilhada” de Romero Oliveira; a visualidade, em tons cor de terra, do figurino, as maquiagens. As máscaras maravihosas parecem legitimar que Mossoró está muito mais perto dos países da América Central, do Caribe, do México, do que dos rincões mais ao sul do território brasileiro.

Gente-artista da Cia. Pão Doce de Teatro agradeço, emocionado, pela lindíssima obra. Como terminar?! Ao formar um coro, digo-lhes:

Ai, ai, ai meu bem, que bom seria

Se tu um dia gostasse d’eu

Se nóis dois se empareasse

Se tu ficasse aqui mais eu

Se meu peito palpitasse

Um coração igual ao seu!!

[1] Doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, professor do programa de pós-graduação do Instituto de Artes da Unesp/SP; pesquisador teatral e autor de diversas obras sobre a linguagem teatral.