A Casatória da alegria, c’á surpresa e c’o espanto

por Simone Carleto[1].

A Casatória c'a Defunta_3

Foto: George Vale

À Rua Bodoca, número 35, no bairro Alto de São Manoel, Mossoró, Rio Grande do Norte, está sediada a Cia Pão Doce de Teatro. Com uma trajetória continuada desde 2002, a trupe já montou os espetáculos, Eu Chovo, tu Choves, ele Chove de Sylvia Orthof (2004), Meus Bons Tempos (2006-2012), Sonho de Cinderela (2008), À luz do luar (2012), A Casatória c´a Defunta (2014), além dos saraus, Os Menestréis de Oswaldo, (2009-2013), Os Amores de Cora e Chico, (2010), Retalhos de Carnaval (2011), e Acordo Invisível (2012).

Para a III Mostra de Teatro de Heliópolis, em 2021, veio a versão filmada de A Casatória c´a Defunta. A peça compõe a programação com outros quatro trabalhos, representando a diversidade de espetáculos produzidos nas periferias brasileiras.

O grupo tem como linha de pesquisa a investigação acerca da presença dos atores e atrizes em cena e a música como elemento dramatúrgico. A Casatória, que estreou e circulou como espetáculo de teatro de rua, mantém tais características na versão filmada, transmitida pela internet em sessão via plataforma de vídeos. Se, na rua, o coletivo usava “pés de banco” (recurso que consiste em afixar um pequeno banco em cada um dos pés e movimentar-se sobre eles para possibilitar melhor visão do público), nas telas recorre aos procedimentos de montagem e composição, para trazer efeitos de coro, contracena, diálogos e coreografias.

De forma lúdica, o elenco conduz a narrativa utilizando elementos de culturas populares tradicionais, tanto na construção das dramaturgias de texto, encenação e do ator/atriz, como na proposição cenográfica, musical e visual. Configurando-se como camadas dramatúrgicas, possibilitam que atores e atrizes atuem como narradores, personagens, músicos e “brincantes”.

A direção da obra original é de Marcos Leonardo, e a versão remota assumida pelo conjunto da cia. No elenco estão Mônica Danuta, Paulo Lima, Raull Araújo, Lígia Kiss e Romero Oliveira. A dramaturgia e trilha sonora são de Romero Oliveira.

Gravada em self-tape, procedimento de cada intérprete gravar em separado, a comédia musical tem como fábula as peripécias Afrânio até se casar com Maria Flor. Acidentalmente, ingressa em um submundo e casa-se com a fantasmagórica Moça de Branco. É interessante pensar na contextualidade histórica, que traz o teatro à virtualidade do encontro por meio das telas, relacionando a história contada no espetáculo à analogia entre a vida e a morte. Um significativo trecho do texto dramatúrgico, narrado pela “Mortalha”, diz que “[…] a alma do branco é igual a do negro; a alma do rico é igual a do pobre; a morte nivela todos”[…]. Assim, a pandemia por Covid-19 tem demonstrado a ineficácia dos recursos financeiros para garantir as vidas, independente de quanto dinheiro as pessoas tenham. Por outro lado, coloca o tempo presente como ainda mais inexorável. Os casamentos “arranjados”, comuns em Folha Seca, ligam-se às gentes alcoviteiras, ocupadas com a vida alheia de moças que casam grávidas, que fogem para casar, que são colocadas em conventos. Tudo amarrado com muito humor, criação de palavras novas tendo como base a astúcia popular e com uma verdadeira costura de histórias, expressões, ditos populares, cantos, danças, superstições, sonoridades e inclusive adivinhas. O expediente é utilizado para condicionar a liberdade de Afrânio para voltar ao mundo dos vivos. A Noiva havia ficado submetida a encontrar um noivo para casar, situação aplacada pela chegada de Afrânio. Mas o encantamento de todes foi patente ao ouvirem Afrânio descrever o modo de ser de Maria Flor, que o moço pode regressar ao seu encontro.

A metáfora do teatro feito através das telas foi assumida pela Pão Doce, que apresentou as personagens da história em molduras de quadros. Mesmo assim, os atores e atrizes se relacionavam olhando para as direções das outras molduras que não as que estavam. Cada moldura trazia um “enquadramento” que trazia também uma composição cenográfica, e dentro do qual há transformações com adereços diversos, máscaras, instrumentos musicais, tecidos e outros elementos que se somam à maquiagem básica fantasmagórica, que antecipa, como o teatro popular e épico requer, o trânsito livre entre os mundos de vivos e mortos.

Os afetos possíveis e potencializados pelo teatro elaboradíssimo que a companhia apresenta, valoriza de forma decisiva os elementos culturais populares brasileiros. Polifônico como a vida em comunidade, o trabalho teatral une ritmos, tons, prosódias aos estilos da farsa, comédia, melodrama. Portanto, a autoria do espetáculo imbrica os achados relacionais de uma obra que se mantém em cartaz há anos, e que se renova diante da necessidade de comunicação em meio virtual. Trata-se da práxis comentada durante o bate-papo após o espetáculo, via rede social, na qual Mônica Danuta, da Cia Pão Doce, David Guimarães e Miguel Rocha, da Cia de Teatro Heliópolis afirmam o teatro como um trabalho realizado coletivamente, em construção e transformação permanente. Como presente em n’a Casatória. “[…]Cada coisa tem seu tempo; e cada tempo o seu canto;[…]O que vem não se adia; um dia tudo volta a ser; e o que há de ser tem muita força; Por isso tenha coragem; recorde o que foi; e celebre o que vem”. Então, sigamos juntes! Evoé!

[1] Artista pedagoga (atuação e direção), mestre, doutora e pós-doutoranda em Artes Cênicas pelo Instituto de Artes da Unesp. Atriz, assessora de diversos grupos teatrais e autora de ensaios e artigos nas áreas de pedagogia, crítica e interpretação teatral.