A Casatória… comédia popular teatral em ambiente virtual apresentada na mostra de teatro de Heliópolis 2021

por Flávio Melo[1].

A Casatória c'a Defunta_2

Foto: George Vale

Em tempos como estes em que estamos a viver – complementem aí que tempos são estes para vocês, para mim o sofrimento é bem grande e por motivos muitos a começar pelas políticas públicas que ignoram as formas populares de cultura e a vida da gente toda pobre – ter assistido à peça Casatória c’a Defunta, foi um alento. Mas em tom de advertência anuncio, como fazia carinhosamente meu avô paterno, abra-te o oio[2], pois não se trata de peça que promove esquecimento das amarguras da realidade concreta, mas ao contrário, é obra teatral com ímpar qualidade poética, com origem cômica, potente, popular e política que se põe a apresentar virtualmente, de modo altamente imaginativo e com referenciais inspirados em formas populares de cultura, um fôlego extra para quem quiser, com astúcia – que isso é coisa da sabedoria popular, astúcia, – (r)existir e continuar a viver.

Viver entre as gentes pobres, populares, é viver andando descalço e pulando cercas, falando certo sem medo de estar errado, e falando errado sem saber se está certo, porque viver entre gente dessa qualidade é ter como condição romper com as fronteiras, porque é essa a concretude da vida da gente, como acentua Anzaldúa[3].

Porque eu, uma mestiza,
continuamente saio de uma cultura
para outra,
porque eu estou em todas as culturas ao mesmo tempo,
alma entre dos mundos, três, cuatro,
me zumba la cabeza com lo contraditório.
Estoy norteada por todas las vocês que me hablan
simultaneamente.

À semelhança do que diz Anzaldúa, sobre sua condição de individua impar, e pertencente a todas as culturas que ela se insere sem deixar de ser a outra, eu vejo e entendo as culturas populares, presentes em todos os tempos e espaços, misturada e misturando tudo, sem compor forma ou tipo único, superior ou inferior, é coisa que sobrevive porque é resistente, respira e se alimenta nas fissuras e das condições mais áridas, e sempre buscando a vida. É essa mistura sem apagamento, sem sobreposição, sem criar uma massa homogênea, é o que eu entendo por cultura popular, mas isso também não se trata de esforço para defini-la, pois não nutro tal pretensão reducionista.

Me sinto atravessado por essa escrita de Glória Anzaldúa, como me sinto pela Casatória. A peça, a meu ver, é forma concebida por diversidade referencial, rompendo coma linearidade temporal e com a pureza estética e conceitual que tenta nos impor a cultura hegemônica, eurocêntrica. Identifico elementos de culturas africanas, Griôs e Griots que contavam histórias com auxilio de instrumentos musicais inventados e confeccionados por eles mesmos. Tramas populares como dos histriões, a exemplo da família dos Rames, trazidos até nosso conhecimento por intermédio de Franca Rame que narrou mais de 200 anos de teatro popular de sua família e Dario Fô, registrou e compartilhou em livro. Do épico inspirado do nosso companheiro Bertolt Brecht. Das máscaras, sejam africanas, orientais, ou as populares italianas e francesas. Não deixam de fora formas populares e tradicionais típicas do nordeste brasileiro, como aliás, é de onde parte para o mundo, a Cia. Pão Doce de Teatro, de Mossoró/RN – para não confundir a gente que me lê, situada na região nordeste do Brasil.

Acertadamente, a Cia. Pão Doce trata a comicidade como forma popular, e com isso, estou me referindo ao modo como apresentam os assuntos, sempre vislumbrando desconstruir as versões oficiais e oficiosas da história, trazendo à cena, outro ponto de vista que confronta a ordem. Usam da estética verbal e corporal para compor as personagens alegorizadas que, com muita habilidade dos atores e atrizes, desenham precisamente estas figuras que são presentes no imaginário popular. A comicidade deste trabalho, portanto, não é o humor do riso a qualquer custo, ou do riso comedido, ou ainda a comicidade dos costumes burgueses que faz rir do pobre/popular, mas é a comicidade do ingênuo e da valente esperta que agem movidos pela fome e ou pelo desejo, e para isso, contam com a astúcia.  Sem pretender definir ou limitar o espetáculo que é rico em referencial, mas apenas para acentuar, destaca-se a sátira como categoria cômica, pois é na perspectiva de desconstrução deste suporte social burguês – casamento – que a comédia se estrutura.

Quanto à estética apresentada nas telas, são janelas, quadros, mas ainda que emoldurados, compõem beleza destacável. Rompe com a ideia de recortes aprisionantes, se coloca como passagens abertas para acontecimentos que decorrem das intrigas, que são as contradições de situações em que estão submetidas as personagens alegóricas, e das tramas, que são os movimentos, encadeamentos dos fatos, feitos pelas personagens visando solucionar as intrigas, similar ao artesão pescador que, com fios compõe sua rede.

De composição, aliás, as pessoas todas que enredaram – aludindo à rede de pescador novamente – entendem muito bem. Agradeço e parabenizo pela delícia de peça teatral popular, que me foi apresentada virtualmente, ao elenco composto por: Mônica Danuta, Paulo Lima, Raull Davyson, Lígia Kiss e Romero Oliveira, à dramaturgia e trilha de Romero Oliveira (igualmente criativa e bela), à cenotécnica precisa e delicada de Edson Saraiva, e à belíssima cenografia e figurinos de Marcos Leonardo.

Antes de encerrar, peço licença aqui para fazer uma pequena sugestão, por tudo que vivem as mulheres, oprimidas de diversas formas, e somando forças ao movimento feminista, seria importante repensar a narrativa que alude, ainda que de maneira rápida, à ideia perversa de que é um homem que salva e liberta a mulher. Ainda mais porque o que decorre de tal fala, não se efetiva, o que é elogioso. É sempre importante – eu penso que seja – que revisitemos as questões todas que esbarram em preconceitos, porque eles, os preconceitos – ao contrário do que querem nos fazer acreditar -, não são da cultura popular, como podem já ter ouvido falar por aí, são ao contrário, arbitrariedades proferidas pela casa branca e pelas culturas que se querem superiores. São preconceitos disseminados e reproduzidos intencionalmente com a finalidade de apagamento e escalonamento de culturas. É preciso por um fim a essa falsa ideia de que a cultura popular é preconceituosa. Não é. E assistir a este belíssimo trabalho prova que as formas populares não precisam reproduzir os discursos perversos, ao contrário, pode e deve combate-los.

Agradeço e parabenizo novamente à gente toda da Cia. Pão Doce de teatro. Desejo vê-los em presença física e materializar um abraço em cada um(a) de vocês. Vida longa, viva!

[1] Doutorando na UNESP/IA onde pesquisa “A Comicidade no teatro de rua: expedientes sobre o popular, risível e subversivo” com orientação do Prof. Alexandre Mate. É Mestre em Educação pela – UFSCAR/Sor., dissertação – Teatro de Grupo: utopia e realidade de uma existência no tempo. Sob orientação da Profa. Maria Carla Corrochano. É membro fundador do grupo teatral Nativos Terra Rasgada (2003 – atual), e é Coordenador de Projetos artísticos e pedagógicos do Espaço Cultural IGESC.

[2] Expressão que meu avô Osaldo, pernambucano erradicado no Paraná, usava quando queria chamar a minha atenção para algo de errado ou perigoso que estava a fazer em minha infância.

[3] Poema retirado do texto “La conciencia de la mestiza / rumo a uma nova consciência”, artigo publicado parcialmente, na revista científica “Estudos Feministas, Florianópolis, 13(3): 320, setembro-dezembro/2005.”, mas que originalmente e integralmente foi publicado como capítulo do livro “Borderlands/La Frontera: The New Mestiza”, pela Aunt Lute Books, em San Francisco California, 1987.