O (en)Canto Afrografado das Filhas da Dita: uma louvação às mulheres periféricas de Cidade Tiradentes,

por Alexandre Mate.

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Além de ter sido uma noite de tempestade lancinante e da dificuldade para se deslocar na cidade, tratou-se de um dia histórico no Brasil (29 de outubro de 2022): véspera do segundo turno do processo eleitoral para eleger um novo presidente e para os governos estaduais. Alguma coisa extra espetáculo, estou certo, acompanhava muita gente: havia uma emoção transbordante atravessando a toda gente. A coordenação da IV edição da Mostra de Teatro de Heliópolis, recortada pela territorialidade periférica, acertou ao programar As Filha da Dita, coletivo da Zona Leste da cidade de São Paulo. Foi uma noite especial na sede da Companhia de Teatro Heliópolis, a Casa Mariajosé de Carvalho.

 

O espetáculo Canto das Ditas – Fragmentos Afrografados de Cidade Tiradentes iniciou-se por meio de um rito representacional popular, o cortejo. Em curto trajeto, o elenco, composto por cinco artistas encantantes, promove o chamamento do público para assistir a um espetáculo-gira por meio do qual se pode ter acesso às trajetórias de um imenso coro feminino, constituído por mulheres invisibilizadas, maltratadas, pisadas… pelo sistema e por homens, em uma sociedade misógina, patriarcal e cultivadora de preconceitos estruturais. Portanto, a dramaturgia de texto cria um tecido épico, que mescla dança, canto, oferenda, histórias: de orixás e deidades femininas de tradição africana e das guerreiras mulheres de um território, chamado Cidade Tiradentes, localizado no extremo da Zona Leste da cidade de São Paulo, cuja população é fundamentalmente nordestina.

 

O ponto de vista do espetáculo (dramaturgia e encenação) é indiscutivelmente feminino. Desse modo, por intermédio da direção de Antônia Matos, cujo trabalho é coletivo,  a obra tem, em seus episódios, uma espécie de rebatimento cujo protagonismo se caracteriza por meio de um fundamento triplo, e pode ser encontrado nas manifestações: das alusões míticas africanas (Obá, Olokun, Iemanjá, sobretudo); nas histórias e oralidade de mulheres migrantes e suas incontáveis dificuldades para (sobre)viver; e o próprio local geográfico que, ressignificado, vai escavando as memórias das infindas lutas contra a barbárie. Há momentos cênicos de pura e encantatória poesia.

 

Realmente, seria próximo do injusto destacar alguém do conjunto de intérpretes em razão da coerência do coro constituído por Cláudio Pavão, Ellen Rio Branco, Lua Lucas, Luara Iracema, Thábata Wbalojá, mas – e peço que me perdoem todas – Ellen e Thábata comovem e têm momentos de arrebatamento.

 

Segundo o que se pode “apanhar” nas falas surgidas durante o debate ocorrido após o espetáculo (que teve a participação de mais de 40 pessoas), o processo efetivo de criação da obra foi iniciado em 2015. Mesmo que não se soubesse desta informação, ou também porque as narrativas são de mulheres parentes do conjunto criativo, pode-se perceber uma maturidade e domínio da obra. Tudo que aparece em cena afigura-se conhecido e visceral.

 

Cumprimento, com respeito e admiração infindas, as criadoras da obra que, estou certo, além de seus tantos méritos entra, também, na categoria de essencial.

 

 

Alexandre Mate: Doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, professor do programa de pós-graduação do Instituto de Artes da Unesp/SP; pesquisador teatral e autor de diversas obras sobre a linguagem t

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