Alguns dos surpreendes territórios-portais de Sampa – tomados como protagonistas no belíssimo Guerra – partilhados pel’A Próxima Companhia,

por Alexandre Mate.

Inicio a tentativa de escrever sobre o arrebatador Guerra, na segunda-feira, dia 7 de novembro de 2022, um dia após a apresentação do espetáculo na Casa Mariajosé de Carvalho. Assisti ao espetáculo na noite de ontem, dia 6 de novembro… A peça ainda vibra em mim. Ainda solicita alguma traduzibilidade do imenso conjunto de símbolos (nem sempre alegóricos), por meio dos quais as surpreendentes camadas de beleza se fizeram. A obra ainda me impacta, me comove, açucara minhas lágrimas…

 

Tomando como referência inicial a tragédia Sete Contra Tebas, de  Ésquilo, texto em que há alusão a sete portais que precisariam ser defendidos, Guerra inicia seu significativo processo de criação por meio de sete intervenções desenvolvidas em distintos territórios da cidade de São Paulo e próximos da sede do coletivo: Largo do Arouche, reduto de resistência das comunidades LGBTQI+; o Minhocão (atual elevado, rebatizado, em 2016, como Elevado Presidente João Goulart); a Cracolândia que, por intervenção genocida do poderes constituídos, tem mudado de lugar; Higienópolis, bairro burguês, de classe média, dita alta; a Favela do Moinho, localizada em área incendiada algumas vezes; Viaduto Santa Efigênia, que uniu a velha São Paulo à (antes) nova, e que já está velha e abandonada, também; a Luz, compreendendo a estação, jardim e imediações com o mesmo nome. De modos diferenciados, os porto-territórios são habitados por gente invisibilizada quando se pensa o país localizado na periferia do capitalismo central. Então, nem Higienópolis se salva!

 

Apresentado em proposição de passarela (com o público dos dois lados da passarela central), a cenografia – genial – de Julinho Dojscar, vai sendo (re)feita em cena, (des)feita em contracena e ressignificada espetacularmente. O coro excepcional de atores e atrizes é formado por Caio Franzolin, Caio Marinho, Gabriel Kuster, Juliana Oliveira, Lígia Campos, Paula Praia e Rebeka Teixeira, que, em minha concepção, forma a primeira trindade da obra.

 

Victor Nóvoa, partindo de adaptações ou textos totalmente medrados, tem criado obras muito significativas. Victor, absolutamente aterrado ao seu tempo, e em permanente diálogo com seus parceiros e parceiras, é um criador de metáfora e de poesias dramatúrgicas surpreendentes, em sua obra, o autor transita entre o grotesco dos tempos, rebatidos por imagens, côncavas e convexas, repletas de beleza. Victor Nóvoa se caracteriza na segunda trindade.

 

 Organizando o estado de beleza que caracteriza a forma final e espetacular da obra, Edgar Castro, que fecha a tríade/trindade de criação, dirige e cria um épico dos tempos, aterramentos e atravessamento do momento. Infindas camadas de beleza, cujos símbolos se entrecruzam, se entretravessam… Há momentos de criação deslumbrantes, emocionantes, de gravidade, de pisoteamento de toda a gente, de alusão explícita e contundente à gentrificação… Edgar Castro, em processo colaborativo, tomando as intervenções de A Próxima Companhia, constrói uma obra, realmente, de tirar o fôlego. Obra carnavalizada que “despedregulha” tudo aquilo que a gente poderosa e perversa, dona do poder da vez, tenta impedir. Essa gente malévola tem encarcerado, sobretudo na calada da noite, (nossa) gente, colocada na rabeira da história, resiste e liberta à luz do dia!

 

Realmente, o teatro de grupo paulistano tem criado obras antológicas, Guerra é uma dessas obras. “Finalizando” com repetição, de frase do espetáculo, seguida de real inquietação: “Que corpo pode? Que corpo se fode!?”

 

Alexandre Mate: Doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, professor do programa de pós-graduação do Instituto de Artes da Unesp/SP; pesquisador teatral e autor de diversas obras sobre a linguagem teatral.