Macacos – espetáculo construído por metateatralidades críticas, revisitantes da histórica oficial
por Alexandre Mate[1].
por Alexandre Mate[1].
Foto: Noélia Najera
Realmente, trata-se de uma impossibilidade concreta e cabal o conhecimento quanto à imensa, intensa, complexa e significativa produção teatral brasileira. Há obras sendo produzidas em todos os cantos, em todos os rincões, em todos os territórios, em toda parte. Obras urdidas a partir de múltiplos olhares, vários pontos de vista, da junção dos mais diferenciados e – aparentemente díspares – expedientes estéticos, tomando os mais diferenciados assuntos e, decorrente do processo pandêmico, coligindo linguagens presenciais às videocinematográficas. Uma produção, no melhor dos sentidos, assombrosa.
Dentre diversas outras obras significativas de dramaturgia de texto brasileiras que adotam aspectos ligados ao ensino (à sala de aula) e aos embates decorrentes dos conflitos e contradições de relação tão viva, estudantes e professores/professoras podem ser destacados/as: Apareceu a Margarida, de Roberto Athayde; Aurora da Minha Vida, de Naum Alves de Souza; Coro dos Maus Alunos ,de Tiago Rodrigues; Enfim, o Paraíso (ou Raposas do Café), de Celso Paulini e Antônio Bivar; Sala dos Professores, de Leonardo Cortez; Stent, de José Rubens Siqueira; Uma Lição Longe Demais, de Zeno Wilde; Quase um Bibelô, de Flávio Souza… Obras cujo assunto pressupõe ou pressuporia a troca (de saberes) entre dois grupos distintos, cuja representação simbólica, e que, por viés evidentemente político, pode ser manifestada por intermédio de um processo compreendendo a luta de classes. Assim como os tribunais, a sala de aula é local épico por excelência.
Assumindo todos os desafios decorrentes do tema, e as tantas obras anteriores, mas, por meio de novos recortes estéticos e pontos de vista sobre a oficialidade (im)postos pelas classes dominantes do Brasil, Clayton Nascimento apresentou, no geladíssimo inverno de 2021 (pelo menos nas regiões Sul e Sudeste do Brasil), um espetáculo admirabilíssimo chamado tão simplesmente Macaco. A obra inicia-se no escuro, recurso a propor/trazer múltiplas alusões metafóricas e reais ao tema e aos recortes por meio dos quais a “aula” se desenrolaria. Clayton assina a autoria (que precisa ser partilhada com silêncios ancestrais de toda a gente que veio antes dele), a direção e a interpretação. Trabalho memorável, emocionantemente racional e absolutamente necessário. Obra eletrizante que obriga a gente má e perversa (se permanecer no “recinto”) a tirar todas as cabeças de dentro das tocas protetoras da história, em oficialidade desmontante.
Macacos é diferente da totalidade de tantas outras obras, belas e importantes sobre o tema (algumas das quais já apontadas), em razão de não se contentar em parar no “meio do caminho” representado pelos conflitos individuais entre dois grupos distintos de sujeitos. Ao contrário disso, e de modo ousado, Clayton aponta, na dramaturgia de texto e na dramaturgia de cena, infindas contradições dos processos de massacre, esquecimento, coerção, barbáries distintas e articuladas, impedimento de imenso/incontável grupo de sujeitos a deixar de figurar da história. Por meio de conjunto articulado de estratagemas estético-táticos, caracterizadores das práticas de ausências e sumiços, a obra denuncia as invisibilidades históricas perpetradas, sobretudo, contra a gente negra, desde sempre. Trata-se, portanto, e como “precisa” ser, de um espetáculo-manifesto.
Para transgredir os chamados – e quase sempre abstratos – pontos de vista, Clayton revisita momentos fundantes de certa e oficial história, desmontando-a. Nesse processo de desmonte, o autor-diretor-intérprete apresenta dados e informações verificáveis e comprováveis… Tal irreverência, usar as ferramentas da gente repressora e perversa para reconfigurá-las, deve deixar muita gente com raiva… tanto os fascistas e defensores de suas classes de origem como aqueles que, em estética, preferem as formas “puras, sagradas e universais”.
Dolência!? Sabemos perpetrada por quem! Mulato inzoneiro? Sabemos definido e esquadrinhado por quem! Samba do criolo doido? Sabemos cantado por quem!..
Clayton evoca, no começo da obra, nomes de sujeitos e símbolos: Bessie Smith, Machado de Assis, a imagem branca da Paz, Terezinha Maria de Jesus, Eduardo de Jesus, Francisco José do Nascimento – o Dragão do Mar, Paulo Fernandes Viana, Família Real Portuguesa, D. Pedra I, D. Pedra II (assim mesmo, no feminino) etc… A partir da concepção de certa e hegemônica história, que centra na figura de heróis (poucas heroínas), mas evidenciando-a documentalmente por meio de outras evidências, Clayton, por meio de mote segundo o qual é preciso por no mundo uma outra voz, e de modo absolutamente irreverente, reconfigura – tomando mesmo seu próprio corpo – para criar novas rotas de evidências das infindas barbáries perpetrada por aqueles (ditos) heróis. Gente sensível vai perdendo o fôlego pela dramaturgia-petardo, com destino certo.
Além de evidenciar, Clayton Nascimento (criador e participante da Cia. do Sal/SP), “usa e abusa” dos contragestos (ou gestus, a partir de Bertolt Brecht) no sentido de evidenciar tudo aquilo que é falado e demonstrado e assumido naturalizadamente. À irreverência nos processos de revisitação da história, o ator debocha, com determinação política (de quem conhece e estudou o assunto), suas apreensões críticas, sem dolência, de modo nada inzoneiro, denunciando o uso contido nas palavras macaco/mulato/de cor… assumindo-se uma espécie grito crítico da história de todas as gentes semelhantes dizimadas dos modos os mais cruéis e perversos.
Obra memorável, essencial e necessária em belezas e em consciências de certa função histórico-social da linguagem teatral.
[1] Doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, professor do programa de pós-graduação do Instituto de Artes da Unesp/SP; pesquisador teatral e autor de diversas obras sobre a linguagem teatral.