Portar(ia) Silêncio – um espetáculo-liminar. Uma caixa – sabe-se lá – Pandora… Muitos gritos em silêncio, muitos silêncios gritados
por Alexandre Mate[1].
por Alexandre Mate[1].
Foto: Mylena Sousa
O que é preciso para lembrar!? Ter vivido!? Ter ouvido relato de outréns?! O ato de lembrar, que pressupõe a passagem de trazer para o presente momentos pretéritos, pode ser ação coletiva ou individual, entretanto, o lembrado é sempre histórico-social! Lembrança é trânsito, é estado de deslocamento que pode ser metaforizado de diversos modos. Uma imagem significativa disso pode ser manifestada por intermédio de um barco singrando os mares… Lembrar é aventura: processo de navegação. O sujeito dirige, mas a trajetória vem por movimentos ondulantes, em um caminho oceanicamente repleto de surpresas. Nem sempre se trazem para o presente acontecimentos bons! O que é preciso fazer para que a lembrança, de momentos nem sempre tão fáceis de serem trazidos à tona, possa ressignificar, reconstituir os tantos escondidos?! Quando me lembro, por meio de partitura absolutamente lacunar, como transformar as lembranças, ditas delicadas ou mesmo traumáticas em experiências que balizem as não repetições!? Muitas, infindas questões… O primoroso Porta (ria) Silêncio é um espetáculo-relicário.
Lembranças, também, podem ser pensadas a partir de proposições ligadas ao periferismo. Se se pensar, tomar aqui o conceito como proposição de liminaridade, o que está mais afastado de mim/nós no presente, entretanto, plasmado em camadas mais distantes vem e vai, com ou sem nosso consentimento. A grafia do nome da obra e suas inúmeras possibilidades de leitura propõe, antes mesmo da recepção espetacular, um jogo de traduzibilidade incerta, múltipla. Porta (ria) Silêncio: substantivo porta, redimensiona-se em verbo no condicional, e/em estado cuja qualidade pressupõe algo contrito, demandador de sabedoria, de astúcia… Então, ao entrar ou navegar para assistir à obra, deixo-me conduzir portando pistas, suposições, vislumbres. Retomando a última imagem do parágrafo anterior, trata-se de um espetáculo-relicário manifesto em mistério… Cruzo as portas, portando a mim (e a todas as lembranças de que sou portador), carregando suposições, em vislumbramento.
Jhoao Junnior (de muitas viagens anteriores pelo teatro, dentre as quais se pode lembrar a participação no Clowns de Shakespeare/RN) é o criador da dramaturgia de texto, da dramaturgia de cena e intérprete (demiurgo, portador de um conjunto significativo de lembranças de isolamento): de si e de muitos homens, que têm nomes e origens, sim, mas por condição de sobrevivência, isolados e, quase sempre, aterrados em suas próprias lembranças. Homens na divisa, nos limites do fora/dentro, em zonas intermediárias, em periferismos liminares. A narrativa da obra (texto escrito e cena) é elaborada por meio de episódios ziguezagueantes: vão e (re)voltam, com novas qualidades, a partir de pontos de vista alegóricos de sujeitos diferenciados. Jhoao – assim como cada um de nós, mais um dos “porte(invizibilizados)” – que, na aparência é apenas um, traz/carrega consigo: Jhoao sozinho, Jhoao e pai, Jhoao consigo. Esses tantos e mesmo Jhoao narra(m) fragmentos de histórias de: Severino (que também divide momentos em alguns episódios), Eronildes, Zé, Rosenildo, Manuel, Sebastião, Cacilda [a Baleia de Porta (ia) Silêncio] têm fragmentos de seus lembrados apresentados por Jhoao Junnior, cujos gestos, elocuções, olhares distintos, silêncios impostos…, ressurgem por meio de um trabalho rigoroso de apreensão e de recriação.
Em determinado momento (e se caracterizará em leitmotiv da obra), a linda composição Naquela Mesa (de Sérgio Bittencourt), com sua letra pungente, tocante e dolorida sobre a ausência do pai, invade e traz lembranças pessoais e profundas, imagino, para a totalidade de quem assiste… Nossos pais surgem e juntam-se ao processo: nova e forte camada emocional. Jhoao, em vídeo, nos apresenta o seu… a cena se amplifica. A cena ganha a presença virtual na virtualidade (projeção também para Jhoao de seu pai-mundo)… Sempre de olhar baixo, o Senhor Pai ou o Senhor Mundo, como Jhoao reconhece, parece levantar os olhos, a primeira vez, ao afirmar ter muito orgulho do filho. Diálogo forte, revelador, humanizante de uma relação normalmente complicada. Os pais, quando dialogam, também podem trazer histórias esquecidas; os pais, quando honestos, podem manifestar, de modo revelador, muito mais aproximações de portarias fechadas, até então, quase indevassáveis.
Porta (ria) Silêncio, do ponto de vista da montagem, é um espetáculo de forma épica e seu “processo de passagem” para o virtual pode ser inserido na condição de teatro reconfigurado por meio de expedientes cinematográficos.
No dia de apresentação da obra (29/07/2021), inserida na programação da 3ª Mostra de Teatro de Heliópolis, a temperatura na cidade de São Paulo estava muito, muito baixa… O frio era arrebatador (5 graus???), mas o espetáculo, eivado de tantas belezas, ao arrebentar silêncios estruturais, aqueceu, inquietou. Parafraseando em misturas poéticas, finalizo afirmando que Jhoao Junnior criou uma obra que apresenta a sábia afirmação segundo a qual “[…] a palavra que sai da boca carrega histórias em memória severina”. Daí, então, deve valer o legado drummondiano (colado a João Cabral de Melo Neto) segundo o qual se pode afirmar que Jhoao Junnior tem apenas duas mãos, mas o sentimento severino do mundo.
[1] Doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, professor do programa de pós-graduação do Instituto de Artes da Unesp/SP; pesquisador teatral e autor de diversas obras sobre a linguagem teatral.